27 dezembro, 2007

Ser tripeiro de "gema", para quem não sabe o que é...

Uns chamam-lhe saudosismo, outros passadismo. Alguns consideram fora de moda, inútil e, quando não, reaccionário o culto da memória consagrada como apego às referências e respeito pelas gerações que nos antecederam. E também de compreensão do significado humano dos acontecimentos que moldaram a História.

O Porto sempre foi cidade ciosa das suas memórias - sobretudo as ligadas aos faustos que marcaram o progresso do país. Uma cidade "grave, ponderada e séria" (no dizer de um jornalista francês) não poderia ser fútil, fácil, inconsistente, do tipo Maria-vai-com-as-outras, como agora é moda para agradar a ímpetos modernizadores com tanto de oportunistas como de invertebrados. Cultivador emérito da memória da cidade é o meu jovem amigo e leitor fiel destas crónicas, João Manuel, que, com a sabedoria das suas 87 primaveras e a persistência de um cidadão honrado, vai contribuindo, através do riso, para vermos a quantidade de reis nus que proliferam nesta maltratada República. Mas, para ele, cultivar a memória é também retratar, em flash-back literário, momentos, factos e personagens inesquecíveis que revelam o quotidiano portuense ao longo do século XX. Nos bons e nos maus momentos. Evocando-os graciosa e nostalgicamente, traz-nos a ambiência e a recordação de momentos perdidos num tempo sem regresso.


Brindou-me agora com um texto em verso, original, autorizando-me a fazer o que quisesse com ele. Acho-o tão carregado de simpatia pela realidade simples e anónima da cidade que resolvi, a título de brinde natalício, partilhá-lo com os leitores. Chama-se "Razão de ser" e começa assim "À porta senti bater / E ao espreitar pelo postigo / Nesse instante quis saber / Quem vinha falar comigo! // Era a saudade!... // Com vagar a porta abri / E logo lhe disse ali: / - Ó saudade, vai-te embora / Não venhas lembrar-me agora / O passado que passou!... // Ela que era teimosa / Pediu licença e entrou / - Que me vens aqui falar? / Para quê eu recordar / A vida que foi vivida / Tão alegre e tão sentida? / Ó saudade, vai-te embora / Para quê eu recordar / Ainda o sol a nascer / Na Rampa da Corticeira / Lá andava a carquejeira / Rampa abaixo! Rampa acima / O suor molhando o chão / Cada peso, grande rima / Pra ganhar o negro pão!"


A Calçada da Corticeira serve de introdução ao episódio seguinte (sugerido por uma destas minhas crónicas, alusiva às praias fluviais da margem esquerda), que nos traz imagens desses "dias do vinho e rosas" em que dificuldades e amarguras não apagavam a esperança, nem muita gente (contrariamente ao que o país visto a partir da capital por série televisiva recente faz crer) se deixava amarfanhar pela opressão. Vamos, pois, atravessar o Douro "O Santos era um senhor / E, na margem, lá estava / Era um grande nadador / E que bem que ele ensinava. // - Vamos prà água, rapazes / Com força para aquecer / Todos juntos são capazes / De nesta "luta" vencer // E era quem mais nadava / E o caíque a acompanhar / E se a força a algum faltava / O Santos logo atirava / A corda para se agarrar // Do outro lado era a margem / Do "Borras" e do "Aurélio" / E ali seria a paragem / Para o tal pequeno almoço / Sem espinha nem caroço! // De fígado eram as iscas / O presunto com a brôa / E essas tais "pataniscas" / Mesmo à moda de Lisboa... / Para o "môlho", o moranguinho / Vindo da Quinta da Vinha / Do Sabastião Ferreira Mendes / Portista e Homem de Bem / Que garrafas sempre tinha / Para oferecer a alguém! // Havia o jogo da bola / Malha e até sueca... / Tronco nu e de calções / Era assim a patuscada / Porque aquelas ambições / Eram Amizade e mais nada.


É claro que, para os defensores do Simplex das emoções (quantas menos melhor, para não nos virem incomodar), falar da Quinta da Vinha e dos inesquecíveis piqueniques que lá se faziam aos domingos, nada diz. Mas quanta doçura de viver eles significavam para os catraios como eu, ávidos de experiências e sensações, nem que fossem ao pé da porta num almoço no campo. Talvez por isso, o poema acaba dividindo-se entre certo apelo ao esquecimento (para que as ausências não magoem demasiado) e a inevitabilidade da memória "Ó Saudade, vai-te embora / E fui fechar o postigo! / O tempo foi porta fora / Fiquei a falar comigo / Do que fui e o que sou... // De repente // Reparei que naquela hora // Teimosamente // Sempre a saudade ficou!".(Vendo bem, quem tinha razão era a inesquecível Ilse Losa ao interrogar-se "O que seríamos nós sem as nossas recordações?...")


Helder Pacheco
(Prof.e escritor)
do JN de hoje