LUIS FERNANDES |
Guardo uma especial memória do PT, como é conhecido na zona: entre 1992 e 1993 residi numa das suas casas. O alojamento não me foi atribuído pela câmara do Porto – foi-me sugerido pela vontade de estudar o universo social dos chamados “bairros problemáticos”, focando-me então nos que tinham na época uma conotação com o fenómeno droga. O PT era já na altura um bairro que sofria com essa etiqueta que gera os efeitos contrários de atrair o olhar mediático e afastar o cidadão comum.
As fábricas que agora começam a ser demolidas estavam ainda em laboração. Uma delas, conhecida na gíria local pela fábrica das botijas, lançava sobre os ares em dias de neblinas noturnas e nenhum vento um leve cheiro a gás – como que se o bairro estivesse votado a um destino químico, oscilando entre os fumos opiáceos e a nuvem de butano… Aprendi nos dias e noites que por ali passei – no PT mas também nos vizinhos bairros de Lordelo e da Pasteleira – que os bairros vistos de perto são sítios como qualquer sítio, onde vive gente comum. E dei até comigo a ter uma experiência nova do ambiente urbano: lugares fora da pressa da cidade dominante, com uma sonoridade mais humana e menos maquínica posto que menos atravessados pelo tráfego rodoviário, onde os cães andam pela rua e os vizinhos falam de janela para janela. Aldeias dentro da cidade, diz-se muitas vezes. Prefiro dizer lugares onde a cidade se interrompe. São cidade, mas produzindo um habitat que rompe com a experiência urbana dominante pelas sensorialidades que acabei de descrever, pela vida de rua, pelo interconhecimento.
Vão agora abaixo as fábricas. A polémica é um desporto nacional, desce em alegre cascata desde a alta política ao café da esquina – e por vezes a qualidade dos argumentos é do mesmo calibre. Que se diz agora sobre o facto em análise? Uns dizem que as fábricas vêm varridas na onda demolicionista que marcou a gestão de Rui Rio e que abateu os blocos do S. João de Deus e duas (para já) torres do Aleixo – como se desarticular o habitat de vários milhares de pessoas fosse da mesma ordem de fazer desaparecer unidades industriais em ruínas; outros dizem que se tira dali um foco de lixo; outros ainda que se tira um foco de “drogados” – o que para alguns, outros, é praticamente a mesma coisa…
Deviam ou não vir abaixo estas unidades fabris mortas? Se não houvesse pessoas que delas fazem o seu abrigo a questão nem se punha. Portanto a questão é outra: devia ou não haver gente que tem como alojamento uma fábrica fantasma? Devia ou não haver gente que passa despercebida, que sofre de invisibilidade e que não conta para coisa nenhuma em pleno coração duma cidade civilizada? Gente que só se nota que existe no dia em que a autarquia decide eliminar da paisagem uma ruína?
As fábricas teriam um dia de vir abaixo, reabilitando-se aqueles terrenos. As cidades são assim, transformam-se permanentemente. A operação tem de ser feita, isso sim, no respeito por quem ali está. Para isso temos instituições, para isso vivemos num Estado de direito, que ainda mantém uma componente, cada vez mais mirrada é certo, de Estado social. O que está em causa neste momento é a oportunidade para repensar duas coisas:
1. Como podemos prevenir que haja gente que acabe a viver ou a deambular toda a jornada em sítios como estes? Não basta dizer “Mas eram drogados!”, como se isso fornecesse uma explicação para o chegar-se a uma situação-limite. As pessoas chegam a situações-limite na sociedade em que todos vivemos – e não num algures abstrato com o qual nada temos a ver – vítimas de condições de desigualdade e dum acumulo de fragilidades que em devido tempo não tiveram quem ajudasse a reparar.
Os “drogados” das fábricas em ruínas fazem-se da nossa distração, crescem com o nosso alheamento. E isto é transversal, desde o cidadão que anda entretido com os seus pequenos problemas e não repara em quem os tem maiores porque o tamanho dos problemas é sempre uma questão relativa ao umbigo de cada um, até ao governo de Portugal, que se empenha em dar más notícias todos os dias, em “resolver o problema da dívida pública” não hesitando em fragilizar ainda mais os mais frágeis, num exercício político marcado pela insensibilidade e pela hipocrisia. Não é sobre hipocrisia este texto, senão muito haveria a dizer sobre quem provocou realmente esta dívida pública e a quem é que está a aproveitar a dieta a que os bons alunos de Merkel têm estado submetidos.
2. Os consumidores problemáticos de drogas que tinham ali o seu contexto diário não vão evaporar-se magicamente, como não se evaporaram os do S. João de Deus e os do Aleixo (alguns são, aliás, os mesmos). Também não precisamos das receitas moralistas de Rui Rio naquela trapalhada do Porto Feliz. Precisamos de realismo e de perceber duma vez por todas que um toxicodependente é uma pessoa, tem direitos como qualquer pessoa, não sairá da droga à base de violência policial como a que ocorre com alguma frequência nestes territórios. E mais: tem direito ao consumo de drogas. Porque, se me disserem que faz mal à sua saúde e isso custa dinheiro a todos, digo o mesmo sobre os gordos viciados em açúcar, sobre os que sofrem de doença obstrutiva crónica porque decidiram fumar anos a fio, sobre os que têm acidentes cardiovasculares como corolário da gula culinária e do sedentarismo alarve. Para mim são todos iguais – iguais na doença da adição, na incapacidade de deter uma vontade que lhes foge ao controle.
Está na hora da coragem política que se traduza na criação de salas de consumo assistido. A lei permite-o desde 2001, o chamado modelo português de intervenção no problema da droga tem sido elogiado internacionalmente – mas está ainda manco desta resposta, que permite trabalhar com grupos de utilizadores em situação de grande marginalidade como os que agora estão em foco com a demolição das fábricas abandonadas do Pinheiro Torres.
[Fonte: Porto24]