12 julho, 2016

O "orgulho" do nosso descontentamento

Bidonville

Sou port(o)guês, não lisbonário, e a partir do momento em que concedemos ao Brasil o privilégio de adaptarmos a nossa língua [mãe] ao português escrito nesse país, também nós temos o direito de criar a nossa própria ortografia particular, concorde-se, ou não, é irrelevante.

O  programa  da  RTP, "Assim se fala em bom português",  é o que mais gozo me dá contrariar. E eu, vou contrariá-lo até morrer, escrevendo sempre conforme me ensinaram. O efeito instantâneo que esse programa em mim provoca, é mudar logo de canal, mas às vezes opto por ver até onde vai a insolência de quem anda a difundí-lo para melhor os  conhecer. Quanto mais insistem em desrespeitar os professores que nos ensinaram a escrever de uma determinada maneira sem preocupações com outras normas ortográficas, viessem elas do Brasil ou de Timor-Leste, mais eu vinco o meu port(o)guês "arcaico". O inglês também é falado de modo variado em imensos países anglófonos (incluindo os Estados Unidos) e nem por isso a ortografia foi objecto de qualquer alteração legal. Mas isso, são os ingleses, que têm uma ideia mais plausível do que é o orgulho nacional, ainda que nem sempre pelas melhores razões, diga-se.

Por falar em orgulho, passada a euforia natural da conquista do Euro de futebol, que até a mim que não vou em palhaçadas me comoveu - não ao ponto de ir  festejar para a rua com a bandeirinha na mão -, há coisas que me ultrapassam, que não consigo entender quando oiço certos portugueses pronunciarem essa poderosa palavra. Orgulho. A língua portuguesa, já alguém disse, é muito traiçoeira, mas esta é uma daquelas palavras que merecem ponderação acrescida antes de ser dita, até porque comporta pelo menos três traduções: vaidade, desdém, ou honra.  

Entendo bem os emigrantes, até porque eu próprio vivi e trabalhei em França ainda muito novo, embora pouco mais de três anos. Vivi em Paris, Lille, Tours e outras cidades menos relevantes, com tempo e oportunidades para me aperceber das dificuldades por que passaram esses nossos conterrâneos. Por aquela época havia um bairro em Paris conhecido por Bidonville (creio que não foi totalmente eliminado) que era praticamente só habitado por portugueses e magrebinos. Era constituído por minúsculas barracas com telhado chapado (como o da foto) sem quaisquer condições. Não foi o meu caso felizmente, porque tinha lá conhecimentos de amigos franceses, mas pude ver com os meus próprios olhos as privações porque passaram esses portugueses. Conheci gente muito boa, pura, corajosa, autêntica, mas também vi do pior, como é inevitável, nestas situações. Eram quase todos nortenhos, do interior, e muitos transmontanos.

Fálo-vos de um tempo em que não havia telemóveis para contactar a qualquer momento com a família, nem instrução primária para facilitar a adaptação ao país e à língua. A maioria dos emigrantes era analfabeta. Ajudei, tanto quanto pude os melhores, os que estavam lá para fugirem à miséria, aqueles cujo carácter não enganava ninguém, apesar da sua humildade. Foi lá que fiz as melhores amizades, aquelas que o tempo e as circunstâncias não são capazes de fazer esquecer.

Actualmente, os emigrantes já partem daqui com alguma formação básica, e outros até com formação superior, com meios que tornam a partida e a distância da terra mais toleràveis. Mesmo assim, a razão que os leva a sair do país é a mesma de outrora, se não pior: falta de  trabalho, e de salários dignos. Ora, quando um povo - e falamos de milhões de pessoas - se vê reiteradamente empurrado, convidado mesmo, a emigrar, por quem tudo devia fazer para o integrar económica e socialmente no seu país,  pergunto: de que tipo de orgulho estarão a falar os emigrantes? Do orgulho/desdém, do orgulho/vaidade, ou do orgulho/honra?

Dos três tipos de orgulho atrás citados o que menos me custa aceitar é o da vaidade. A vaidade, porque, não podendo ser o desdém, também não pode ser o da honra. Porque, apesar do sentimento de orgulho comportar alguma ambiguidade, tanto os portugueses emigrantes como os residentes não podem honrar-se de viver num país que nem depois de 42 anos de democracia conseguiu passar a fasquia da mediocridade. Construímos novas pontes e auto-estradas, mas o salário mínimo nacional permanece dos mais baixos da Europa "comunitária". Essa honra, esse orgulho, os emigrantes foram-na buscar a França e a outros países, que não ao seu.

Por isso, seria bom não confundir a terra, a aldeia, a família e os amigos, com o país, porque isso é emocionalmente legítimo, mas intelectualmente impróprio. A vaidade pela victória da selecção nacional de futebol, espelha e encobre ao mesmo tempo, o que nos falta conquistar como país socialmente harmonioso e justo.

É de um país assim que devemos ambicionar, porque ainda estamos muito longe de o ter. De resto, e em síntese, o orgulho, com toda a sua complexidade interpretativa, é acima de tudo um sentimento de suprema dignidade. E a dignidade de um povo, para se levar a sério, não pode ficar refém da conquista de troféus desportivos, embora saibam sempre bem. 

Cherne com lula-vampiro

Rui Tavares

Vamos ao que interessa. Era 1984 e a meia-final do Europeu de futebol. Os televisores de ambas as tabernas da aldeia ainda seriam a preto-e-branco, mas deu bem para ver que os dois golaços que o Jordão marcou contra a França nos davam uma superioridade estética perante os ressaltos e carambolas dos últimos seis minutos do prolongamento que nos tiraram o acesso à final e à glória. Doeu e ainda não foi esquecido.
Depois era 2000 e eu, chegado a Paris dois anos antes, todas as semanas atravessava a cidade para ver a bola com o André Belo, meu grande amigo, num clube de imigrantes portugueses de longa data. Num certo Inglaterra-Portugal para um outro Europeu de futebol, visto nesse mesmo clube, já perdíamos por 2-0 aos 20 minutos. Pior do que os golos dos ingleses eram os comentadores da televisão francesa, condescendentes e quase gozões com a nossa equipa — pelo menos até ao momento em que Luís Figo pega na bola a meio do campo e corre para a enfiar na baliza com um chuto de raiva. Calaram-se os comentadores, gritámos nós. Talvez nunca tenha visto aquela gente tão feliz como após a reviravolta com os elegantíssimos golos que vieram depois, de João Pinto e Nuno Gomes.
E não, não me obriguem a falar dessa meia-final de 2000 nem da famosa mão de Abel Xavier. Estou aqui nas horas antes da final do Euro, sou um daqueles adeptos que não quer morrer sem ver a seleção ganhar um título grande e vocês, a esta hora, já sabem se fomos campeões ou não.
É que se vamos falar de coisas tristes, admitamos o seguinte: ainda bem que esta é uma final entre futebolistas e não entre presidentes da Comissão Europeia. E mudemos de assunto para admitir — Durão não é nenhum Delors. O político português sempre sofreu com a comparação com o decano político francês mas acabou de pôr o último prego nesse caixão. Delors foi um verdadeiro líder da UE, que governou sempre com sentido de coesão e solidariedade; Delors não teria deixado, como Durão deixou, os governos rasgarem os tratados e usarem as instituições comunitárias para policiar e punir os estados mais endividados. Acima de tudo, Delors saiu para continuar a mobilizar gente pela causa europeia porque sabe que um ex-Presidente da Comissão Europeia não pode nunca, mas nunca, passar a servir um interesse privado extra-europeu.
Foi isso que aconteceu: o nosso cherne está agora ao serviço do banco que já foi descrito como “uma gigantesca lula-vampiro enrolada na cara da humanidade, com o seu tubo de sucção alimentar incansavelmente fossando em busca de tudo o que lhe cheire a dinheiro”. Os franceses são dos europeus mais escandalizados, e com razão.
Por isso falemos de coisas alegres — espero eu, já a poucos minutos de distância da final. Espero que a esta hora os nossos emigrantes em França estejam a chegar ao trabalho de peito cheio e sorriso de orelha a orelha. E se algum colega lhes disser que isto do Durão na Goldman Sachs é uma vergonha, que ao menos lhe possam responder: tens toda a razão. Mas nós temos a taça.
(Público)

11 julho, 2016

A minha alegria...


pela conquista do primeiro Campeonato Europeu de Futebol, não passa pelo histerismo mediático que se implantou no país, nem tão pouco pelo oportunismo daí decorrente. Já tinha escrito antes, e volto a escrever, que enquanto houver "jornalistas" a olhar para Lisboa como fosse nome de país e não de capital, e a usar o sucesso da selecção para promover os jogadores e clubes da 2ª. circular, nunca alinharei nessa euforia de falso patriotismo.

No que diz respeito ao feito desta selecção, há que louvar o espírito solidário e de resiliência, tanto dos jogadores (sem execepção) como do treinador Fernando Santos. Não venceu dando grandes espectáculos, é verdade, mas com o pragmatismo e o realismo dos grandes líderes. Por isso, digo com toda a franqueza, que apesar do histerismo a que atrás aludi, gostei daquele grupo de jogadores, todos, incluindo os que não tiveram oportunidade de jogar. Eles, só eles, o treinador e o público, mereceram esta grande alegria, mais que não seja por contribuirem para a moralização de um povo fustigado pelas contínuas trafulhices de governantes miseráveis. Destes portugueses sinto asco, um desprezo mortífero.

Como desprezo, o despropósito dos mesmos do costume (pasquineiros da imprensa, rádio e tv) de continuarem a promover os clubes da capital, com incidência tendenciosa para o Benfica, à pála da selecção como genuínos parasitas de fazer inveja aos xulos do Bairro Alto. Ainda agora, por altura da aterragem do avião que transportava a selecção no aeroporto de Lisboa, pudemos assistir a mais um golpe destes. Logo a seguir à abertura da porta de saída do avião, houve alguém que decidiu colar na fuselagem a fotografia do Eusébio como se ele fizesse parte da selecção. Isto, é não só uma falta de respeito pelos jogadores que acabaram de realizar este sonho, como pelo próprio Eusébio, que já cá não está entre nós, e que apesar de ter sido um grande jogador, tal como Ronaldo,  também não jogava sozinho e nem sequer conseguiu a mesma proeza da actual selecção, apesar da prematura publicidade dada a Renato Sanches, que como ontem se viu nem sequer foi dos melhores.

Mas é assim o fanatismo  centralista, lisboetizar um país quando devia uní-lo. A esses, dedico o meu maior e eterno desprezo.