Esta noite, sonhei que vivia num país onde a proximidade entre eleitores e eleitos, era bem mais autêntica do que aquela que os beijinhos e abraços dos candidatos deixam transparecer em campanha eleitoral. Era tão natural essa aproximação, que me fez acreditar na existência de uma verdadeira Democracia. Sonhei que tinha convidado as três figuras mais importantes do Estado [Presidente da República, Presidente da Assembleia da República e Procurador Geral da República], a assistirem, na minha companhia, aos noticiários das televisões portuguesas e a passarem os olhos pela imprensa diária, sobretudo a desportiva. Pelo sim, pelo não, pedi-lhes que, por uns minutos, fizessem um esforço de concentração para depois emitirem as suas opiniões sobre o que tinham observado. Surpreendentemente, todos aceitaram o convite. Fiquei pasmado. Nunca pensei que a consideração por um simples cidadão como eu, merecesse tais atenções da parte de tão distintas personalidades. Cheguei a pensar que estava a sonhar. E estava. Mas eu, é que julgava que não.
Confortavelmente sentados, liguei a televisão e pedi-lhes uma última vez para estarem atentos. Tive o cuidado de os poupar àquelas maratonas com opinion makers e com peritos multifacetados, para não os indispor e prejudicar a avaliação que iam ter de fazer.
Passei de pronto para os noticiários desportivos, que era o que me interessava tratar. E, claro, como não podia deixar de ser, os noticiários abriram quase todos ao mesmo tempo com o glorioso "Benfica! Uma, duas, três vezes, sempre com o Benfica a abrir os espaços noticiosos desportivos. Como se não bastasse, a seguir, impingiram-nos uma verdadeira biografia do Fábio Coentrão. As entrevistas aos amigos, colegas, ex-colegas e familiares, foram exploradas à náusea, só porque o rapaz tinha sido transferido para o Real Madrid e... era benfiquista. Terminado o folclore do costume, as televisões lá resolveram mudar de cenário. Dessa vez, para falar do Sporting, e só mais tarde e, por último, do FCPorto. Do Sporting de Braga, que até foi finalista vencido da Liga Europa, nem uma palavra.
Quando os meus ilustres convidados já se preparavam para abandonar o estúdio improvisado, pedi-lhes mais um pequeno favor. Que passassem os olhos pelos jornais desportivos. O que, aceitaram pacientemente... Finalmente, perguntei-lhes: o que é que V. Exas. pensam, do que acabam de ver? Acham sério, democrático, que o FCPorto, campeão nacional, seja remetido por todas as televisões e jornais para um plano terciário ou que nem sequer seja noticiado? Acham correcto, que se faça isto ao clube português que nos últimos 30 anos mais prestígio trouxe a Portugal?
Como era de prever,o senhor Presidente Cavaco foi o primeiro a falar. Tentou pôr água na fervura - com aquele ar de paizinho afectado, que o caracteriza -, dizendo que o Benfica era um grande clube, que tinha muitos adeptos, e que se tinha de "compreender" os aspectos comerciais dos jornais e das operadoras de televisão, etc. Os outros dois convidados, mantinham-se calados, em respeitável e protocolar silêncio.
-Desculpe, senhor Presidente, mas o senhor está-me a dizer que o Benfica, porque "é" o maior clube português, merece estatuto e tratamento especial? E o que é que V. Exa. me diz do direito à livre concorrência dos outros clubes? Estão proibidos de ultrapassar os feitos desportivos do Benfica?
- Bem, já conquistou 2 Campeonatos Europeus, ganhou muitos campeonatos nacionais, troféus... O Eusébio...
- E daí, senhor Presidente? O FCPorto, também não tem vencido campeonatos, troféus nacionais e internacionais? V. Exa. por acaso ignora que o FCPorto já ultrapassou o Benfica em número de títulos? Que é considerado
o 3º. melhor clube do mundo no ranking da IFFHS [Federação Internacional de História e Estatística de Futebol]?
- Bem, mas o Benfica...
- O senhor Presidente não sabe que o FCPorto também teve os seus Eusébios, os seus Fernandos Gomes, Jardeis, Decos, Ricardos Carvalhos, Luchos, Lisandros e mais recentemente, os seus Falcões? Todos eles jogadores de top, cobiçados pelos clubes mais ricos do Mundo?
- Sim, é verdade, mas o Benfica tem mais adeptos, sabe...
- Então, V. Exa. está-me a tentar dizer que esse, é um facto imutável? Que nenhum outro clube pode almejar ultrapassar o Benfica em número de simpatizantes? Que isso é a negação do próprio desporto?
- Humm, bem, poder pode, mas...
- Mas, o quê, Senhor Presidente? Não é politicamente oportuno admiti-lo?
- Olhe, meu amigo, ao fim e ao cabo, estas coisas não passam de futebol, e o que é preciso é fair-play.
- Futebol esse, melhor dizendo, futebol Clube do Porto esse, que tem feito entrar mais divisas no país em 10 anos, que muitas outras empresas em 30! O senhor Presidente é economista e desdenha este importante facto?
- Não era o que eu queria dizer. É futebol, sabe...
- Posso fazer-lhe uma pergunta frontal Sr. Presidente?
- É claro, estamos em Democracia.
- Era capaz de transferir o seu distanciamento do futebol para a política?
- Mas eu, não me distancio do futebol, apenas tenho coisas mais importantes com que me preocupar. Até fui ao estádio de Oeiras [perdão], ao estádio Nacional, entregar a Taça ao FCPorto.
- Que me diria o Sr. Presidente, se alguém argumentasse que o PSD não podia ter o mesmo tempo de antena, nem ultrapassar em votos o PS partindo do mesmo pressuposto, porque era o partido com mais eleitores na história da democracia nacional?
- Essa, meu amigo, é uma comparação absurda. Nas eleições a alternância é fundamental para a saúde da democracia, com os clubes trata-se de paixão. Não são coisas comparáveis.
- Então, o Sr. Presidente admite que o FCPorto tem o direito de seguir o seu caminho de victórias e de continuar a aumentar o número de adeptos?
- Sim, sim, faz sentido!
- Então V. Exa. concorda que aquilo que os media em geral, e as televisões em particular, estão a fazer não é um trabalho sério, e a tratar o FCPorto como merecia?
- Ó meu amigo, as imagens que nos mostrou agora são pontuais. Hoje, falam do Benfica, amanhã do FCPorto, e depois do Sporting. É assim, não exagere com o seu portismo.
- Quer perder uma aposta senhor Presidente? Quer confirmar o que me está a dizer?
- Eu não aposto, nem no Euromilhões, meu amigo.
- Pudera, os que mais apostam, são os que menos têm, Excelência! Mas será que o senhor estará disponível
para acabar com o mito da clubite e ligar a televisão todos os dias, durante os próximos mêses [para não enjoar], para confirmar o mau jornalismo que se faz em Portugal e o modo faccioso como promove o Benfica e tenta denegrir o FCPorto?
- Bem, bem, meu caro, está-se a fazer tarde e eu ainda tenho uma declarações a fazer ao país. Estamos a atravessar uma crise social e económica gravíssima, e há coisas muito mais importantes a tratar do que de rivalidades futebolísticas.
- Claro Sr. Presidente, espero é que não acuse o FCPorto e o Sr. Pinto da Costa de serem responsáveis por esta crise. Eu diria que esse é um barrete que encaixa na perfeição na cabeça dos políticos, incluindo na sua [com todo o respeito, por V.Exa.].
- Meu caro, agora temos de ir. Há mais vida para além do futebol.
- Desculpe Sr. Presidente, mas V. Exa. não chegou a dizer-me o que pensa deste jornalismo... Está bem, ou não está? O que pensa do assunto? Não acha ser preciso mudar alguma coisa?
- Acho que o senhor está a exagerar, que vê as coisas de forma demasiado emotiva
- Lá isso é verdade, Sr. Presidente, às vezes fico tão revoltado que me apetece entrar pelo écran da televisão e partir a cara a certos comentadores e jornalistas.
- Isso que o senhor está a dizer é muito grave, é preciso alguma contenção e bom senso.
- V. Exa. vai-me perdoar novamente, mas insensato é o silêncio, a cumplicidade passiva, como o senhor e o senhor Procurador Geral, estão a lidar com esta situação, que já é antiga. O que a comunicação social anda a fazer ao FCPorto e à sua respeitável massa de adeptos, é uma autêntica provocação, uma declaração de guerra, um atentado à paz social! Ainda não se deu conta disso, senhor Presidente?
- O senhor já ultrapassou todos os limites, é melhor conter-se.
- Percebido, excelência! Fica o registo. Se um dia, isto descambar em violência, quero saber em que alicerces irá suportar a sua previsível indignação. Nessa altura, espero encontrar-me fisicamente longe de V. Exa., porque a minha indignação será mais genuína que a sua, e posso até confundí-lo com um desses miseráveis fazedores de fretes que tão mal têm feito à classe dos jornalistas.
De súbito, o senhor Presidente perdeu o ar de avozinho e gritou pela guarda, para me dar ordem de prisão. Mas, infelizmente, acordei.