Quando fui viver para a beira-rio de Gaia, território que hoje integro na minha urbe genésica, sentia-me estrangeiro. A beira-rio de Gaia era um microcosmo muito peculiar que conciliava, em estranho conúbio, os benefícios civilizacionais de uma grande cidade com uma mentalidade de aldeia. Hoje, a normalização imposta pelos mass media já quase não permite discriminar entre as idiossincrasias rural e urbana seja de que lugar for. Todas as particularidades étnicas se dissolvem no magma indiferenciado da normalização cultural que, quase sempre, corresponde à estupidificação maciça das mentes e vontades. Logicamente que a sanha acéfala das televisões generalistas na procura de audiências fáceis é responsável por este estado letárgico de iliteracia que caracteriza o urbano e o rural do Portugal hodierno.
Mas nunca reneguei, nem renego, a parte de mim que é povo-povo, no que este tem de fútil e descomprometido com asceses culturais ou perorações hermenêuticas sobre a existência humana. Sou a síntese de todos os passados que vivi e alguns não foram de todo culturalmente saudáveis.
Por isso convivo bem, com a parte desse povo que não tem pretensões a culta ou letrada, já convivo pior com aqueles que têm a mania que são intelectuais só porque leram os Maias e a Morgadinho dos Canaviais no ensino secundário e que agora escalpelizam os jornais desportivos numa hermenêutica de filólogos.
No verão, naqueles dias quentes de esturricar tenho um gosto especial em fazer duas coisas: nadar no rio frente a minha casa refrescando os coisos e a alma e, no fim de tarde já crepuscular, ficar no serrote com as minhas vizinhas. A Elisa e a Joaquina são as minhas interlocutoras nos serões vespertinos.
Elisa – Olha práquela com o cu à mostra!
Joaquina – Isto é uma pouco vergonha, todas oferecidas!
Zecas – O que é bom é para se ver; e oferecidas não o são senão eu tinha notícia.
Elisa – Tenha juízo pois tem uma namorada bem bonita.
Joaquina – Este óme não tem juízo nenhum.
Zecas – Tenho tempo na cova para ter juízo. Na cova não, no rio pois quero ser “cromado” e as minhas cinzas lançadas da ponte D. Luís ao rio Douro. Aí vou eu a caminho da América na minha versão atómica e subatómica.
Elisa (olhando para o prédio onde nasceu e agora comprado e remodelado para hostel). Quando olho para ali até me apetece chorar. Nasci ali e ali nasceram os meus filhos. Tenho o coração preso àquela casa. O que me custa olhar para aquela casa.
Zecas – Deixa lá Elisinha. Continuas a viver à beira-rio. Deixa-te de lembranças saudosas. Olha para o outro lado. Olha para o Porto.
Enquanto eu rodo o corpo no banco de pau feito de pedra para olhar o Porto a Elisa continua a olhar a casa onde veio ao mundo.
Zecas – Olha o Porto, Elisa.
Elisa – O Porto nada me diz. Isto sim.
Zecas – Que lindo é o meu Porto.
Joaquina – Isto é uma pouco vergonha, todas oferecidas!
Zecas – O que é bom é para se ver; e oferecidas não o são senão eu tinha notícia.
Elisa – Tenha juízo pois tem uma namorada bem bonita.
Joaquina – Este óme não tem juízo nenhum.
Zecas – Tenho tempo na cova para ter juízo. Na cova não, no rio pois quero ser “cromado” e as minhas cinzas lançadas da ponte D. Luís ao rio Douro. Aí vou eu a caminho da América na minha versão atómica e subatómica.
Elisa (olhando para o prédio onde nasceu e agora comprado e remodelado para hostel). Quando olho para ali até me apetece chorar. Nasci ali e ali nasceram os meus filhos. Tenho o coração preso àquela casa. O que me custa olhar para aquela casa.
Zecas – Deixa lá Elisinha. Continuas a viver à beira-rio. Deixa-te de lembranças saudosas. Olha para o outro lado. Olha para o Porto.
Enquanto eu rodo o corpo no banco de pau feito de pedra para olhar o Porto a Elisa continua a olhar a casa onde veio ao mundo.
Zecas – Olha o Porto, Elisa.
Elisa – O Porto nada me diz. Isto sim.
Zecas – Que lindo é o meu Porto.
Continua lindo apesar das Elisas do Porto, também expulsas dos seus lugares genésicos, terem migrado para os bairros periféricos e muita da cidade ter perdido a sua alma.
Ó políticos de todos os matizes, aprendam que a alma de uma cidade não é dada pelos turistas, mas sim pelos seus habitantes. Os turistas podem acrescentar-lhe alguma alma, mas é uma alma fugidia, fugaz, temporária. A alma perene de uma cidade é criada pelos que nela nascem, crescem, vivem e morrem. Um turista que venera uma cidade acrescenta-lhe algo de inovador. É assim desde sempre. Quando os bárbaros do Norte conquistaram Roma respeitaram-na e admiraram-na na sua eloquente grandeza. Tomaram a cidade, mas respeitaram a sua alma. Coisa que os prosélitos do cristianismo não fizeram em relação aos lugares das pugnas desportivas. O cristianismo ascendente na Roma Imperial destruiu os lugares de culto das coisas do corpo considerados antros do demónio. Eis uma boa pergunta a fazer. O que é a barbárie?
Aqui e agora, talvez a turistificação descontrolada das cidades com alma. Porto, Lisboa, Veneza, Barcelona, Madrid, Roma, Atenas, têm de se defender do crescente surto de expansão turística desordenada.
Coloquemos as coisas como devem ser colocadas. Logicamente que tenho orgulho no reconhecimento internacional da cidade que me viu nascer. Sempre a propagandeei em todos os lugares a que aportei nas minhas viagens. É com imensa satisfação que vejo a cidade cada vez mais multitudinária, prenhe de turistas que são os melhores divulgadores das qualidades intrínsecas desta cidade maravilhosa. Não posso, nem quero, parar esse movimento de internacionalização do Porto num momento em que o afluxo turístico ao nosso país tem-nos dado alguma capacidade de resolução dos défices económicos que atavicamente nos fragilizam. Não me posso esquecer que o equilíbrio da balança de bens e serviços, que é algo que não acontecia em Portugal há muitos e muitos anos, tem na melhoria da balança do turismo um forte fator contributivo. Portanto, o interesse nacional também assenta na promoção, desenvolvimento e crescimento do turismo.
Os políticos e os homens de negócios recolherem, em proveito próprio, as benesses duma expansão turística sem precedentes e para a qual não contribuíram de forma significativa. Este surto acelerado de globalização da cidade do Porto e do país é menos resultado do labor orientado de políticos com visão de futuro e mais resultado duma conjugação de factores com origem tão distante como o médio oriente ou o norte de África. Obviamente que a peculiar idiossincrasia do português que sabe receber bem o estrangeiro, a excelência paisagística e culinária, a paz social e os programas de intercâmbio cultural e académico internacionais a que temos de acrescentar, para ser justos, as promoções dos agentes cometidos aos dossiês turísticos, são fatores que confluem em Portugal como destino turístico privilegiado. Temos de nos regozijar que Lisboa e Porto estejam entre os destinos turísticos mais elogiados por todas as revistas internacionais da especialidade.
Não podemos parar a roda do desenvolvimento e progresso, mas podemos, se tivermos políticos avisados e corajosos, controlar a sanha descaracterizadora que tudo o que é pato bravo pretende impor para sugar na teta turística até à exaustão. Tal como a reestruturação das florestas portuguesas deve pressupor a implantação, no meio das manchas “eucalípticas” predadoras, de zonas de florestação com espécies autóctones e ecologicamente mais adaptadas à biocenose portuguesa, também os autarcas do Minho a Timor (porra, já me esquecia que o Império já foi) devem cuidar em criar zonas urbanas recuperadas, acessíveis aos que querem habitar os centros das cidades, num equilibrado convívio com os visitantes.
Segundo um provérbio, ou persa ou indiano não me lembro bem, deixa de ser viajante quem permanece mais de 3 dias num sítio. Temos de privilegiar a guarida dos viajantes nos centros das cidades, mas não podemos esquecer aqueles que nela querem ficar mais de três dias, por vezes, uma vida.
(de José A. R.dos Santos)