Sem grande dificuldade, seria possível encher o espaço desta crónica com números que atestam uma das maiores vergonhas da nossa República - os calotes que o Estado prega, ao mesmo tempo que, sem corar, apregoa ser uma pessoa de bem. Como esse seria um exercício aborrecido para o leitor, a introdução deste texto pode resumir-se usando palavras de Miguel Cadilhe: "Um Estado 'caloteiro' é absolutamente condenável do ponto de vista da ética da República, envergonha-nos a todos. Mas em tempos de crise isso ganha uma outra gravidade do ponto de vista da economia", disse o ex-ministro das Finanças ao JN (ver edição de ontem).
É difícil contrariar a opinião de Cadilhe. Mas é fácil acrescentar-lhe outra "gravidade": aquela que afecta os trabalhadores e respectivas famílias. É ver, na mesma edição deste jornal, o caso da PMH. A empresa fornece material hospitalar a todos os hospitais públicos. Tem 900 funcionários: 560 em Samora Correia e 340 em Penafiel. Está à beira de mandar os trabalhadores para casa, porque o Estado lhe deve 8 milhões de euros. Quer dizer: como o Estado não é pessoa de bem, arrisca-se a ter quase mais um milhar de portugueses a engrossar as já volumosas listas do desemprego.
O exemplo é grave, se pensarmos no número de famílias que podem ser afectadas (muitos dos companheiros das funcionárias da PMH estão igualmente sem trabalho). Mas é apenas uma pequenina ponta (com o devido respeito pelos eventuais afectados) de um dos tremendos icebergues que gelam a nossa economia.
As causas primeiras deste estado de coisas são tributárias de um modo de vida muito português: aquele que se agarra ao facilitismo, ao laxismo e ao chico-espertismo para escapar por entre os pingos da chuva. Que atire a primeira pedra aquele que, perante uma exigência do Estado, não procurou ziguezaguear para tentar escapar à dita cuja.
Verdade: os portugueses têm suficientes razões de queixa do Estado para procurar vingança. Verdade: o Estado arranca-nos o couro e o cabelo sem sequer pedir licença. Verdade: as coisas vão piorar antes de melhorar. Desconfio, no entanto, que mesmo quando melhorarem, as coisas, estas coisas dos calotes, manter-se-ão mais ou menos como estão.
Estamos a falar de um terrível círculo vicioso em que (quase) ninguém paga o que deve a tempo e horas. O Estado não paga às câmaras, que por sua vez não pagam às empresas, que por sua vez não pagam ao Fisco, à Segurança Social e aos trabalhadores, que por sua vez não pagam impostos e somam despesa... E por aí fora até à asfixia do sistema. Numa economia sem liquidez como a nossa, esta é a verdadeira morte do artista. Até porque, mesmo quando o nó parece desbloquear-se, aparece sempre um burocrata a pedir mais um papel que faz o processo voltar ao início. Faz lembrar aqueles jogos em que o traiçoeiro dado nos atira para uma casa cuja penalização é regressar ao início. Sucede que, nos jogos, temos tempo e a coisa é a brincar. Na vida real, não temos tempo e a coisa é a sério.
Regresso a Miguel Cadilhe: "O Estado agrava a crise, em vez de a moderar".
[do JN]
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