É impossível ficar-se insensível e não ter repugnância pela forma cobarde e impiedosa como aquele polícia já ferido, caído no passeio, foi abatido. O mesmo digo em relação a todas as outras vítimas do jornal francês Charlie Hebdo, embora tivessemos sido poupados a assistir a essa outra chacina. Como qualquer pessoa normal, fiquei impressionado com aqueles actos abjectos em Paris, pelo que repudio toda e qualquer causa que pretenda justificá-los. Aquilo não é nada, é pura alienação, porque não há causas no mundo que justifiquem fundamentalismos desta natureza, sejam elas quais forem.
Mas, se tragédias como estas devem ser denunciadas, repudiadas e severamente punidas, usá-las indiscriminadamente para alimentar audiências e tesourarias de órgãos de comunicação social, não deixa de ser uma forma errada de prestar um bom serviço à causa da Liberdade. E é a propósito da badalada e tão maltratada Liberdade que quero acrescentar umas coisinhas ao côro unanimista de convertidos à causa dos Je suis Charlie . Sim, umas coisinhas algo inoportunas, dado o ainda muito recente estado de choque geral do Mundo com os acontecimentos de Paris, mas que convirá não esquecer.
Sendo um apreciador confesso do cartune inteligente, tal não significa que todos os cartunes sejam inteligentes e inevitáveis hinos de Liberdade. Em certos casos (raros) até pode acontecer. Na hipótese intermédia, o cartune pode não também não passar de uns azedos rabiscos de alguém zangado consigo mesmo, descarregados sobre outrem. Em análise extrema, pode até exprimir um estado de alma de alguém tão transtornado como os próprios terroristas, autores da barbárie em Paris...
Senão vejamos. Quando um cartunista de um país ocidental faz publicar bonecos satíricos susceptíveis de ofender figuras públicas do seu próprio país, como poderá ele admitir que um fanático qualquer terá capacidade para interpretar com fair play democrático esse tipo de sátira? Dir-me-ão que o cartune não tem de ser politicamente correcto, formativo, pedagógico. Pois bem, mas é bom lembrar que os alvos das sátiras não foram dirigidos a espíritos democráticos, mas sim para gente com conceitos sociais e religiosos extremados e sem qualquer sentido de humor. Num outro prisma, será a mensagem errada, o desenho agitador, a caricatura hostil, a ironia mordaz, a única e máxima expressão de Liberdade? Tendo em conta os visados, não seria mais sagaz optar por outra estratégia, quando se insinua aos quatro ventos como supremo objectivo dos jornalistas o fim dos fundamentalismos e das tiranias mundanas?
Neste contexto, parece-me algo desasjustada e até abusiva a utilização da bandeira da Liberdade. Não seria mais profícua e gloriosa a pedagogia? Teremos todos esquecido aquela historinha antiga, mas sábia, que nos ensinou como apanhar "moscas"? O "mel" não será mais eficaz que o "fel"? Sei que não é de moscas que falamos. É de homens desintegrados, desesperados, dispostos a tudo para se sentirem importantes, ainda que para isso tenham de morrer e matar inocentes. Eles não têm causas, fazem a causa. Nem que seja espalhar o terror pelo Mundo. Acham que gente com esta mentalidade é confiável, que se conquista (ou domina) com cartunes? Que valerá a pena desenhar uns bonecos incompreensíveis aos destinatários, arriscar a própria vida, e sobretudo a vida de quem nunca fez nada para ofender quem quer que fosse?
Há quem tome o bom senso por medo. Que confusão, que estupidez. No caso da barbárie parisiense não houve heróis. Os que assassinaram, também já foram mortos. Quem ganhou? Sabem? A Liberdade? Errado! Já o disse infinitas vezes, mas nunca cansarei de repetir: toda a Liberdade será uma fícção enquanto houver fome no Mundo. E quem diz fome, diz desemprego, diz também Portugal, diz Passos Coelho, diz Troika, diz Angela Merkel, diz União Europeia.
As religiões, são o bode expiatório da maior das tiranias: o capitalismo. Dêem-lhes uma vida digna, que com o tempo, os fundamentalistas em vez de se fanatizarem por Alá, de decapitarem cabeças, e de se perderem aterrorizando Mundo, vão querer é regressar cedo a casa, para junto da família, depois de um dia de trabalho. Mas para isso precisam de paz duradoura e de progresso social.
Era por esta LIBERDADE que gostava de ver o Mundo lutar. Unido. Os cartunes não vão libertar nada, vão apenas abalar consciências, temporariamente. Depois, tudo voltará à (a)normalidade.