O Porto deve estar no cimo de uma montanha e Lisboa num vale: porque tudo o que medra no Porto tem tendência a escorregar, mais tarde ou mais cedo, para a capital. Ou, então, Porto e Lisboa estão ao nível do mar, e a culpa não é da geografia e das leis da Física: é da bem conhecida doença do "centralismus glutonensis".
Há um procedimento-padrão.
Em primeiro lugar, a enorme resistência em aceitar que quaisquer competências sejam exercidas fora da capital. Se não for possível evitar, seja! Vão lá as tais competências para Norte mas, imediatamente, tente-se descaracterizar o processo. E, o mais depressa possível, corte-se nos recursos para estrangular. Se, por desgraça, as coisas ainda assim correrem bem, então deite-se abaixo custe o que custar. O instrumento privilegiado costumam ser as razões "técnicas", às vezes uma ou outra chico-espertice "jurídica" (por exemplo, um artigo num contrato de concessão ardilosamente redigido), ou as célebres razões de índole "prática".
Os do Norte e, mais especificamente, "os" do Porto são uns trogloditas peludos e chorões. Estão sempre a queixar-se, têm a síndrome de capital, não fazem pela vida, sofrem com o complexo provinciano, estão sempre insatisfeitos. De tudo isto teremos ouvido, e vamos continuar a ouvir sempre que se preparar mais uma.
Desta vez, parece poder estar a ser congeminado um novo assalto, relacionado com o Centro de Produção do Norte da RTP. O bolo da noiva é a RTP2. Como se saberá, a sede da RTP2 é no Porto, em consequência de um envolvimento fortíssimo de poderes públicos da região (entre os quais a Frente Atlântica do Porto) e da sociedade civil, com a Academia em grande destaque, com Serralves e outras organizações muito importantes a exigirem. Por uma vez, falou-se a uma só voz e o Poder Político (no caso, o Ministro Poiares Maduro) compreendeu e aceitou. O que só o honrou.
Mas não se pense que foi fácil, ou que a resistência capitalense ia acabar, porque nunca acaba. Logo a RTP2 sofreu duríssimos cortes no orçamento, logo pulularam as ordens de serviço que retiraram o que puderam de autonomia. Mesmo com tudo isto, a RTP2 é hoje o único canal relevante no serviço público de média. Tem o melhor jornal, às 21 horas, que provou, de forma inovadora e sem medo do risco, como em 40 minutos se consegue informar, e bem. Tem séries que deram e dão que falar (Borgen, El Principe e, agora, os Influentes), tem cultura, tem artes, tem uma programação que (até que enfim!) se percebe. A RTP2 está na moda, é um produto que demonstra, todos os dias, como é possível fazer belíssimas omeletas praticamente sem ovos.
A RTP2 estar na moda deveria ser motivo de orgulho. Seria assim, mas só na terra de S. Nunca. Vai daí, ao estar a correr bem, ao estar na moda, ao ser feita de forma barata, com imaginação e com qualidade, a RTP2 passa a ser um perigo, e um perigo grave em Lisboa. É que, com a sua existência no Porto, demonstra-se, com aliás inúmeros exemplos, que no Centro de Produção do Norte da RTP se faz (no mínimo) o mesmo, com muito menos dinheiro. E isso é inaceitável.
Anova estratégia de quem poderá estar a pensar este assalto à mão desarmada (se for à mão armada, ao menos, só podem levar-nos o que temos na carteira) até será divertida. Desde que a RTP2 está no Porto, tudo tem sido feito para que quem a pensa e executa fique sem meios e sem autonomia.
Agora, o que se congemina? Fácil. Se "eles" lá no Norte já praticamente só têm o poder de pensar o canal, então a RTP2 pode ser feita em Lisboa. É só um saltinho, depois mandamos-lhes uns bombons, como na canção de Jacques Brel. Fecha-se o ciclo, e acabam-se as comparações muito desagradáveis. Os labregos, afinal, não fizeram uma RTP2 local, fizeram-na nacional, de qualidade, barata e plural. De facto, é inaceitável, anda o Mundo às avessas quando aquela gente já quer fazer televisão séria e a sério.
Vamos agora testar, e testar mesmo, se, além de terem sabido derrubar o anterior Conselho de Administração da RTP, os membros do Conselho Geral Independente (CGI) conseguem exercer um poder muito mais difícil, embora pouco espetacular: garantir o pluralismo real do serviço público de média. E o pluralismo, esse, também é territorial, por muito que alguns pensem que o Mundo, e de certeza o seu umbigo, começam e acabam na bela capital.