Valter Hugo Mãe * |
Depois do massacre no cemitério de Santa Cruz, tornou-se insuportável a hipocrisia dos estados em relação a Timor-Leste. A descolonização portuguesa, tardia, foi negligente culminando uma ainda mais negligente ocupação de séculos. O país soube nada acerca de criar paridade, não ultrapassou um racismo elementar, auferiu dos lugares, das pessoas, dos seus corpos, sem convicção alguma de caminhar para a igualdade, para a tão retórica e prometida integração. A colonização foi uma aberração histórica que trouxemos até demasiado recente. Quando vimos em direto as imagens grotescas de Timor-Leste, assistimos à falência moral da nossa propalada história de feitos tão bravos quanto cruéis.
Poucas vezes o povo português se mobilizou emotivamente com uma causa como com esta. Diria que nunca mais vi o mesmo mar de acenos brancos, comoções pela paz que exigiam dos governantes da altura uma ação imediata. Claro que foi a divulgação internacional das imagens do massacre, mormente na CNN, que criou o efeito de indignação na diplomacia do Mundo. Foi a imprensa internacional e foi Kofi Annan, secretário-geral da ONU, homem do Gana, que já vinha revelando uma preocupação para com a situação e a intenção clara de defender aquele povo no sentido da sua libertação.
Portugal, de povo unido, podia muito pouco depois de haver abandonado atabalhoadamente os países que ocupara, mais ainda, depois de guerrear com eles, matando milhares, destruindo quanto pudesse. Éramos o maior aliado num misto de profunda culpa e vergonha.
Passam 20 anos desde o referendo que estabelece a independência de Timor-Leste e o consequente nascimento da sua democracia. O mais que se sabe é a luta contra a miséria. Que vocação tivemos para deixar na miséria os países ocupados! Até a naturalmente riquíssima Angola sangramos de fome. Até o Brasil não foi, para nós, senão o imenso celeiro de onde extorquíamos bens. Integrámos ninguém. Abastecemo-nos e mestiçámos por gulas, não por respeito humano, vontade de ouvir, partilha.
Hoje, o meu orgulho é no povo timorense que soube resistir e soube escolher a independência. Com todo o empenho de tantos, há vinte anos, o mérito é de quem resistiu ali. Esta data é uma vitória que elogia Timor. A diplomacia e a comoção portuguesas não serão mais do que a solidariedade possível depois do abuso. A memória do todo é o único caminho para um futuro onde nada disto se possa repetir.
*Escritor
(JN)
Nota de RoP:
A lucidez, ao contrário dos gostos, não é, nem pode ser comparável ao gostar do azul, ou do vermelho. É uma questão de seriedade intelectual, independente e intransponível. É uma espécie de diamante no meio de pedras sem brilho. E afinal, nem pedras são, trata-se de gente vulgar. Por isso, considero Valter Hugo Mãe, o intelectual mais honesto da actualidade.