|
Pedro Ivo Carvalho
(JN) |
Eles movem-se com um à-vontade inquietante. Parecem invisíveis até nos apercebermos do estrondo que fazem quando são notados. Germinam nos partidos de poder, saltitam de galho em galho, ora servindo uns, ora servindo outros. Alimentam-se dessa entidade gigantesca e frágil chamada Estado. Resistem a governos, ministros e ideologias. São as pessoas erradas nos lugares certos. Sempre que eclode mais um escândalo, revelam-se pela sagacidade dos métodos, pelo descaramento dos expedientes, pelo avultado, porque é sempre avultado, rombo que causam nas contas públicas, no dinheiro que é de todos, mas que eles acham que lhes pertence. Eles lá vão, aspirando os recursos à medida que se repetem, ano após ano, legislatura após legislatura, os debates muito sérios e muito estéreis sobre a necessidade de reformar a máquina da Administração Pública. As sangessugas são uma praga bíblica: podemos pensar que as exterminamos de cada vez que a Polícia Judiciária e o Ministério Público desembainham as espadas, mas há sempre uma subespécie que prevalece. E se multiplica.
Ter um Estado que está em todo o lado acarreta esta dimensão perversa de podermos estar a desviar o Estado dos locais onde verdadeiramente ele é necessário. O escândalo da Octapharma é revelador das formas de que o monstro se serve para se manter saciado. Uma grande empresa controla o negócio do plasma, derivado do sangue. Por vontade do Estado. Estabelecem-se teias espessas de cumplicidade e interesses comuns. Ajustes diretos justificados com a economia de mercado. Um empresário e lóbista, Lalanda de Castro, amigo de um médico, Cunha Ribeiro, ex-presidente do INEM e da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, assenhora-se, assim apontam os indícios, de um negócio que é, literalmente, um bem vital para o país. Um pequeno favor aqui, um fechar de olhos ali, com a mesma cadência sincopada com que um coração bomba sangue para o corpo.
E isto, além dos largos milhões de euros que podiam ter sido gastos em camas de hospitais, medicamentos, horas extraordinárias a médicos e a enfermeiros, é o que mais devia indignar-nos. E não me venham dizer que é demagogia. O dinheiro não voou. Podia e devia ter tido um destino de serviço público.
Na verdade, a corrupção a este nível num país que investe (e bem) tanto dos seus recursos numa área determinante como a saúde é a assunção de que já atingimos o grau zero da desfaçatez. Somos nós a aceitar que as sangessugas continuarão sedentas e rechonchudas perante aqueles que insistem em manter o monstro bem nutrido a pretexto do bem comum.
Nota de RoP:
Tudo isto é deplorável, revoltantemente tolerável, porque o povo não reage, como deve, a isto. Sabem por quê? Continua a votar. Apesar das abstenções.