04 julho, 2019

Justiça independente para quê?

Pedro Bacelar de Vasconcelos
A denúncia de uma suposta "captura do Estado" pelas teias da corrupção foi recentemente assumida, com indesculpável leviandade, por personalidades de diversos quadrantes. Não discutimos as intenções dos autores de tão grave diagnóstico, que devia merecer ponderação mais séria e que reclama análise crítica, sobretudo, porque envolve magistrados judiciais e agentes da justiça. A corrupção é um problema estrutural das sociedades humanas que exige das instituições sociais vigilância incansável e luta permanente. É tão imprudente ignorá-la como admitir, candidamente, a possibilidade de a erradicar para sempre, porque não há atividade humana que lhe seja imune nem remédio definitivo que a extermine! Por isso, o Estado de Direito Democrático instaurado com a Revolução de Abril de 1974 criou sistemas e mecanismos especializados para a detetar, combater e prevenir. Entre estes, assume papel essencial, justamente, a garantia de uma justiça independente, isenta e imparcial. E para assegurar o êxito de tão difícil missão, a Constituição qualificou a justiça como um "poder soberano", equiparado aos órgãos de representação do povo e ao Governo democrático.
A justiça, entenda-se, não foi concebida como um poder virtuoso e infalível. Cuidou-se apenas de proteger as suas atribuições próprias contra a ameaça de ingerência ou usurpação por outras forças ou interesses de natureza pública ou privada. Enquanto titulares de um poder soberano, os juízes estão logicamente sujeitos a tentações e fragilidades equivalentes às que afetam os membros do Governo ou os deputados da República. Não sendo os titulares da justiça anjos dotados de uma virtude superior à dos restantes cidadãos, é fundamental cuidar da sua independência e autonomia para que o poder que lhes foi confiado não se corrompa ao serviço de outros valores ou interesses. Lamentavelmente, não foi possível na revisão dos estatutos dos juízes e do Ministério Público, ainda a decorrer na Assembleia da República, proceder à revisão adequada do quadro legal que fixa, respetivamente, a sua independência e a sua autonomia. A corrupção existe e tem de ser combatida. Acusação tão violenta, vinda de quem tem a responsabilidade última de a punir, não será indício do risco de instrumentalização da independência e da autonomia por forças sindicais que disputam influência nos respetivos conselhos superiores? A independência, a imparcialidade, a isenção, a vinculação à lei, precisam de ser defendidas, também, de reivindicações profissionais e enviesamentos corporativos.

*Deputado e professor de Direito Constitucional
Nota de RoP:

Quando criticamos as opiniões de alguém, por vezes é relevante identificar as fontes. Se essas fontes partirem de figuras públicas, torna-se mais simples classificar a sua credibilidade. Mas não se confunda a importância da identidade dessas fontes com simpatias partidárias, porque  daí nunca conseguiremos retirar boas ilacções. 

Aquilo que realmente importa é conhecer muito bem o carácter do emissor. Tratando-se de figuras públicas, dou como simples exemplo o carácter incomparável entre o ex-primeiro ministro José Sócrates e o ex-presidente da República, General Ramalho Eanes. Colocá-los ao mesmo nível seria um crime de lesa-pátria, uma traição ignóbil à dignidade de quem fez tudo para a merecer, e à de quem fez o contrário, no exercício das respectivas funções... 

Ora, o autor do artigo acima publicado limitou-se a referir-se a "personalidades de diversos quadrantes", classificando-as como levianas, mas sem as identificar, o que não é lá muito coerente. E devia, porque assim talvez a crítica fosse mais construtiva, e útil. Para mim, essa foi a primeira falha deste artigo. Depois, foi o excesso de zelo usado na linguagem temática. Trata-se da denúncia de teias de corrupção capturadas pelo Estado, coisa que para muitos nem sequer é novidade. Eu também tenho essa convicção como profunda, porque se baseia em exemplos que os representantes do Estado não são capazes de dar para merecerem o benefício da dúvida. A culpa é exclusivamente deles!

Se, como diz Bacelar de Vasconcelos, a corrupção é um problema estrutural das sociedades, então há que reforçar a estrutura, e se esta é constituída por gente, é porque essa gente não só é indevidamente seleccionada, como  mal controlada, e o problema começa, e termina aí. A partir desse momento, não havendo um bloqueio oportuno, o contágio do facilitismo, com tendências criminosas, segue sempre em crescendo. Depois, sim, é muito difícil travá-lo. Mas não é impossível. Só precisa é de maior rigor, e de inflexibilidade! Ora aqui é que a porca torce o rabo! Os políticos, essa gente sedenta de poder, sente-se mais confortável a comandar, sem respeitar as normas que o cargo exige.

Se o país está visivelmente mais contaminado pela corrupção, a pior coisa que se pode fazer é suavizar o problema. E quem tem, ou teve, responsabilidades políticas não pode amaciar este grave problema com generalidades comuns e sem vontade para o combater. Isto pode até lançar suspeitas a quem se agarra ao fatalismo das dificuldades. Há que combater o crime da corrupção a todo o custo, pondo em acção a prática das leis e punindo os infractores, quaisquer que sejam os seus cargos e influências.

Sendo certo que a Constituição qualificou a justiça como um poder soberano, pouco valor prático daí advém se quem governa o país olhar para a Constituição sem a respeitar. Processos de intenção têm sido o espelho das práticas políticas nacionais, basta memorizar o que fizeram com a Regionalização. De que valeu estar lavrada na Constituição? Tudo começa com este desrespeito da parte dos próprios políticos. Tudo o resto não passa de desculpas de mau político, de eternas falsas promessas. 

Seria bom que os eleitores passassem a reclamar o direito a demitir governos por voto, e não apenas o cómodo dever de eleger. Que confortável é hoje viver desta  política  anacrónica. 


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