20 janeiro, 2008

Há que ter vergonha na cara

Do ponto de vista ético, no respeito pela solidez dos alicerces da vida pública, é especialmente repugnante a facilidade com que antigos titulares de altos cargos políticos - normalmente ministros - transitam de modo nada criterioso para funções relevantes na esfera privada, frequentemente para áreas profissionais em que detiveram poder de tutela, depois de terminada a sua "comissão de serviço" na esfera do Estado.

A lei e um conjunto de regras a ela associadas podem obviar a desmandos de vária ordem, quer definindo taxativamente uma série de incompatibilidades, quer estabelecendo, por exemplo, que se observe um período de nojo, uma espécie de intervalo asséptico, até que o ex-titular de um determinado alto cargo político possa exercer actividade profissional - ou uma mera actividade relevante e notória, por exemplo em órgãos sociais - em empresa ou instituição do mesmo universo onde foi directo responsável político.Mas a lei não basta. Também é preciso que as pessoas tenham escrúpulos, até porque uma lei de incompatibilidades demasiado precisa, extensa e pretensamente rigorosa pode, ao fim e ao cabo, revelar-se perversa e perniciosa, funcionando ao contrário do que pretendia acautelar.

É que basta uma pequena "nuance", uma dúvida interpretativa, uma falha do legislador ou uma vírgula fora do sítio apropriado para que a mais "perfeita" e completa das leis transforme comportamentos indecorosos e politicamente condenáveis em atitudes legítimas e compreensíveis, apenas e só porque são legais.

Há precisamente dois anos, nos primórdios de 2006, tivemos desta problemática um exemplo paradigmático quando o então deputado Pina Moura, antiga figura de proa dos governos de António Guterres, estava a ser ferozmente acossado pela crítica pública a propósito do caso EDP--Iberdrola. Em defesa própria, Pina Moura apressou-se a lembrar que a ética da República é a ética da lei. Curiosamente, nessa mesma altura, o seu colega de bancada Manuel Alegre veio a público com argumentação similar, neste caso a pretexto das suas convenientes e propaladas ausências nas votações do Orçamento de Estado (andava ele em intensa pré-campanha eleitoral a roubar votos a Mário Soares), argumentando com toda a candura que a lei não o obrigava a estar presente.

Embora com diferentes graduações e intensidade, esta temática voltou a ser motivo de notícia e reflexão nos últimos tempos a propósito da passagem de Armando Vara, antigo ministro de António Guterres, da administração da CGD para idêntico órgão no BCP, e da proposta de renegociação do contrato entre o Estado e a Lusoponte que confere a esta empresa presidida por Ferreira do Amaral (antigo ministro de Cavaco Silva precisamente na área das obras públicas e dos transportes) a exclusividade no atravessamento rodoviário entre as duas margens do Tejo na zona abrangida pela área metropolitana de Lisboa.

O caso de Ferreira do Amaral parece-me bem mais grave do que o "fenómeno" Armando Vara - apesar de ele ser o bancário que, porventura, mais rapidamente ascendeu a banqueiro na história de Portugal -, simplesmente porque a dimensão ética da vida pública obrigaria Ferreira do Amaral a um impedimento vitalício de qualquer tipo de ligação, mesmo não remunerada, com empresas às quais concedeu benesses ou outorgou responsabilidades em nome do Estado.Pois é a ética da República não deveria confinar-se à ética da lei, como defendem Pina Moura ou Manuel Alegre.

Para além do respeito da lei, ter alguma vergonha na cara também nunca fez mal a ninguém.

Ferreira do Amaral negociou o contrato com a Lusoponte em nome do Estado. Ferreira do Amaral está agora do outro lado da mesa das negociações, em nome da Lusoponte, a renegociar com o Estado o mesmíssimo contrato. Acham isto normal?P.S. Paulo Teixeira Pinto, ex-presidente da Comissão Executiva do BCP, foi "despedido" com uma indemnização milionária de 10 milhões de euros, e garantiu ainda uma pensão vitalícia anual equivalente a 500 mil euros. Estaria Cavaco Silva a pensar neste seu antigo colaborador, do tempo em que foi primeiro-ministro, quando criticou no discurso de Ano Novo os elevados salários de alguns gestores?

Luís Costa , no JN

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