19 janeiro, 2014

Sofrimento democrático




Os psicólogos lidam com frequência, nos vários campos e domínios institucionais em que trabalham, com o sofrimento psicológico e com a dor mental. Os técnicos de intervenção social, quando trabalham em certas áreas e franjas populacionais, lidam com a vitimação colectiva e o sofrimento social. Pois há ainda um outro sofrimento que anda agora a alevantar-se e a que vou chamar sofrimento democrático. É menos óbvio, é mais insidioso e só atinge quem interiorizou a democracia enquanto liberdade, responsabilidade, compromisso ético e atitude cidadã – o que não é nada que se adquira automaticamente nem vá lá com discursos de boas intensões.

A expressão pode ser equívoca. O sofrimento democrático, para um saudoso do salazarismo, é o mal-estar que vive desde 1974. Para mim, seria passar horas intermináveis na Assembleia da República a ter de escutar certos parlamentares. Se mandasse, encarregava uma empresa de recursos humanos de fazer uma selecção profissional competente, exigente e rigorosa – quantos dos atuais ficariam nas bancadas de S. Bento?

Sofrimento democrático foi também o que aconteceu a não poucos portuenses durante os últimos doze anos de gestão autárquica do Porto. Não me fez mossa a mim, mas fez à cidade – o que é um modo também de me fazer mal. Mas tocou-me sobretudo o que sofreu muita gente da que, por capricho de decisões no campo das políticas sociais, se viu obrigada a sair dos seus contextos de vida com o falso argumento de que se estava a resolver o problema dos “bairros das drogas”. Para quem duvidar, é só ir agora ver como já está resolvido… Num mundo a alta velocidade, dir-me-ão que isto já não é notícia. Pois não. Notícia é uma torre do Aleixo a ser implodida, são os gritos entusiasmados dos que vêem ao longe e os gemidos de dor de quem via de perto. Agora, o sofrimento democrático prossegue em silêncio. Porque aquela gente não se evaporou, continua a viver todos os dias, em muitos casos pior do que antes da inteligente solução que a câmara ofereceu ao seu bairro… Entretanto, Rui Rio deve andar já a preparar o próximo lugar de onde nos oferecerá mais sofrimento democrático.

Sofrimento democrático é ver um governo em que o vice-primeiro ministro recolheu 12% dos votos nas urnas – quer dizer, 88 em cada 100 dos que votaram não o escolheram a ele. Sofrimento democrático é estar quase a vê-lo ir-se embora ao som dum “irrevogável” e vê-lo depois reentrar com poderes reforçados. Sofrimento democrático é ver José Sócrates instalar-se em pezinhos de lã em Paris, fugindo assim à queda no abismo que ajudou a cavar, e ter agora de o ver trepar outra vez ao palco televisivo como se a sua opinião fosse fulcral para os nossos destinos. Até onde trepará ainda? Até onde treparão os que sucessivamente nos desgovernam? Tenho uma sugestão: já que subir é sempre para mais alto, por que não promovem Durão Barroso daqui a uns meses, quando largar o tacho europeu, a embaixador da UE na lua? Teríamos finalmente o primeiro português no espaço, última fronteira da diáspora lusa.

Quando, há uns tempos, o governo de Passos Coelho tomou posse, pareceu-me logo que o sofrimento democrático ia piorar. E quando se me tornou claro o que nos iria acontecer até ao final do mandato desinteressei-me de mais notícias: desliguei dos noticiários televisivos, desisti dos blogs de política, das colunas de opinião (menos da minha, claro), neutralizando deste modo a máquina de tortura. Porque as notícias da política governamental e do seguidismo da maioria parlamentar que diz ámen são o contrário do que devia ser um organismo que governa: tiram-nos o que ganhamos, tiram-nos o que não ganhamos (no caso dos reformados), tiram-nos a esperança, tiram-nos a vontade. E fazem-no em tom de ameaça, como quem governa um bando de gente miúda.

Mas pior ainda do que tudo isto é a pressa com que se afadigam a mudar os fundamentos do regime, porque simplesmente não gostam da ideia de Estado Social e gostam da ideia de Estado neoliberal. São gostos, eu sei. Mas não foram legitimados nas urnas, assemelhando-se assim a abuso do poder. O sofrimento democrático é isto: esta dor de alma de ver uns quantos a achar-se no direito de decidir o destino de todos à revelia destes. Não é isto ainda uma ditadura, porque apesar de tudo estas são piores, porque já neutralizaram os mecanismos autocorretivos dos sistemas político e social, porque interrompem a ideia, cortam a palavra, perseguem e maltratam. Não, não é ainda uma ditadura – mas é uma espécie de pós-democracia. E a pós-democracia, a mim e com certeza a muita e muita gente, enche-me de sofrimento democrático.

(Porto24)

4 comentários:

  1. Tudo vai mal no reino democrático deste país. Policias sem autoridade, que nada fazem (pelo menos não se vê nas ruas) Ladroagem, droga e toda a espécie de crime neste país batem récord. É tudo mau neste país, políticos, ministros, justiça é tudo uma festa na Feira da Ladra.
    Não há luz ao fundo do túnel, é um país que está à venda, para chinês comprar, é um país doente, cheio de peste política por tudo quanto é sítio.

    O PORTO É GRANDE, VIVA O PORTO.

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  2. Isto de "desinvestir em tudo" e tornar os serviços publicos maus para justificar a privatizaçao da saude, educaçao e transportes, é uma estratégia antiga e básica de politicos que sao meros empregados de quem detem o capital.

    De facto, os Bilderbergs estao em grande e a máquina centralista que tao maus resultados deu a Portugal, apoderou-se definitivamente da Europa, porque só um sistema profundamente centralizado pode facilmente ser controlado pela minoria detentora da maioria da riqueza. Essa minoria transformar-se-á no futuro próximo cada vez mais numa "micro-minoria" do capital.

    Entrámos na Europa numa altura em que ainda tinhamos uma máquina politica fraca e ignorante. Seres bem falantes mas com poucos conhecimentos do mundo (coisa que pareciamos ter antes da ditadura, a avaliar pela nossa literatura).

    Agora colhemos os frutos de tanta ignorancia e subserviencia aos ricos que haviam fugido e depois voltaram para roubar o que havia, dividir o bolo entre eles e em seguida, de uma posiçao de força, contratar "escravos" aos partidos numa troca de favores. Esta troca de favores baseia-se no individualismo e na traiçao à pátria sem qualquer pudor.

    Resultado de uma populaçao com fraquissimo nivel de instruçao e de um dormir à custa do trabalho dessa populaçao e do que as colonias proporcionavam antes da "democracia".

    Cada vez mais os mediocres sobem e a gente com espinha dorsal fica sem oportunidade.

    Isto terá um reflexo brutal num Porto, que nao é capital, nao tem bolsa representativa, nem sedes, que perdeu uma década com Rui Rio e que agora com esta crise se arrisca a cair no abismo. As gentes do Norte (que votaram contra a regionalizaçao - e podem vir com a conversa do mapa, já conheço esse bla bla bla de gingeira - como se os mapas fossem feitos para ser estáticos) continuam a dar tiros nos pés e nao parece haver maneira de mudar a cabecinha do pessoal que quando tem meia duzia de tostoes no bolso, se julga rica e fica com pensamentos de burguês rico quando apenas é micro-empresário.

    Enfim, democracia, onde estás, se nem a propria moeda imprimimos e a ignorancia que estava a diminuir volta a crescer com a saida dos jovens.

    Há demasiado menino que nunca fez nada e demasiado analfabeto para a coisa avançar.

    Podem-me chamar o que quiserem, mas nao tenham duvida que daqui a uma meia duzia de anos a Europa vai andar ao tiro e só tenho pena que nao ande já, porque de Portugal nao sairá nada, só uma cópia envorganhada do que se passar noutro qualquer pais europeu.

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  3. Deacon Blue20/01/14, 12:45

    Bom dia,

    Estou na mesma onda. Deixei de asistir a programas de informaçao que mais nao sao que maquinas de tortura.

    No entanto, às vezes estou distraído e dei comigo semana pasada a ver o catraio de barba, um tal de nao sei quê Maduro a sentar-se para dar uma conferencia de imprensa sobra as mudanças (as usual....) na RPT. Disse eu "...fosgasse..." e corri para o comando a mudar de canal.

    É assim que encaro esta catraiada.

    Deacon

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  4. Soren,

    Sem comentários...

    Estou consigo.

    Para quem não saiba o que é o Clube dos Bilderberg seus adeptos, aqui vai:

    http://sicnoticias.sapo.pt/economia/2013/06/09/paulo-portas-e-antonio-jose-seguro-estiveram-no-clube-de-bilderberg

    Um abraço

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