18 novembro, 2016

É só vapor

David Pontes (JN)

Imaginem que se desligaram do Mundo durante um dia. Nem jornais, nem televisão, nem redes sociais. Depois desse jejum, sentam-se numa confeitaria para um café, levantam a cabeça e está na televisão a seguinte frase: "Da boca de Bruno de Carvalho, só saiu vapor".

Confesso que esfreguei os olhos duas vezes perante a frase com contornos mitológicos, antes de conseguir sintonizar no candente tema que, ao que percebi, tem ocupado fóruns de debate, rios de tinta e muitos minutos de televisão. E depois de me contextualizar, veio-me à memória uma conferência de imprensa do treinador de basquetebol dos norte-americanos Golden State Warriors, Steve Kerr, no dia seguinte às eleições norte-americanos.

O treinador tinha estado no balneário com os seus jogadores, muitos deles pertencentes a minorias raciais, e não conseguiu conter-se a um comentário sobre o novo presidente: "Olhando para os 10 últimos anos, talvez nós devêssemos perceber que isto vinha aí. Quando olhamos para a sociedade, para o que é popular, quando pagamos milhões de dólares para as pessoas irem para a televisão berrar umas com as outras, seja em desporto ou no entretenimento, acho era só uma questão de tempo até contaminar a política. Subitamente, estamos confrontados com a realidade: que o homem que te vai liderar emite rotineiramente mensagens racistas, insultos. Isto é duro".

É duro, é real e, sem fugir à autocrítica de quem trabalha todos os dias num jornal, acho que se torna cada vez mais premente questionarmos a qualidade do debate no espaço público, o clima de conflitualidade e de discurso irracional que ocupa muito do nosso tempo. Então, se pararmos para olhar os programas de desporto, percebemos como absolutas irrelevâncias se tornam assuntos de suprema importância, capazes de despertar as mais acesas paixões. Como lembrava Steve Kerr, é todo um clima que acaba por contaminar a sociedade.

Vale a pena lembrar o importante livro que Neil Postman escreveu em 1985, "Amusing ourselves to death" [Divertirmo-nos até à morte], sobre o nosso tempo, muito mais próximo, segundo ele, do "Admirável mundo novo" de Aldous Huxley, do que de "1984" de George Orwell. "Orwell receava aqueles que nos poderiam privar de informação", mas "Huxley temia aqueles que no dariam tanto, que nos reduziriam à passividade e ao egoísmo. Orwell receava que a verdade nos fosse ocultada. Huxley temia que a verdade se afogasse num mar de irrelevância".

Pode ser que seja só vapor, mas é cada vez mais difícil de ver o que quer seja de inteligente no meio disto.

*SUBDIRETOR

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