Vasco Lourenço |
Vasco Lourenço recebeu o i na sua sala na Associação 25 de Abril, para defender que os militares devem fazer hoje uma manifestação pacífica. Mas o capitão de Abril também avisa que, se a situação se agravar, os militares poderão ser obrigados a “dizer basta”. Com quase 70 anos, Vasco Lourenço lamenta que “se esteja a tentar destruir tudo o que se conseguiu com a revolução dos cravos”, que ajudou a fazer.
Tem aqui três cravos na sua sala. O que é que eles ainda hoje simbolizam para si e para o país?
É um dos símbolos principais, que gosto de usar em momentos importantes. É uma esperança de liberdade permanente, de paz, de justiça social e de democracia.
As chamadas conquistas de Abril estão mais do que nunca em causa?
Com certeza que estão. Nós hoje estamos, e já não é segredo para ninguém, a assistir a uma guerra sem qualquer contemplação contra aquilo que foram as melhorias que o país teve com o 25 de Abril. Está a tentar-se destruir tudo aquilo que se conseguiu. Está aí o capital, que é insaciável. Os neoliberais estão a tentar destruir isto por completo. Hibernaram, mas nunca se acomodaram à situação democrática de uma sociedade mais justa.
A maioria dos economistas diz que essas conquistas não são sustentáveis. Ou seja, não há dinheiro para continuar a pagar reformas tal como elas existem, os subsídios de desemprego...
Então para que serve o Estado? Há dinheiro para isso. O dinheiro não falta. Está é locais errados.
Onde é que está?
O dinheiro existe, está a fugir para offshores, as empresas principais pagam impostos fora do país e grande parte desses economistas são papagaios do sistema. Eu se fosse economista e tivesse participado na vida política, depois da hecatombe a que assistimos em relação àquilo que eles defendiam, pintava a cara de negro, como se dizia na minha terra. A grande maioria deles – dos fazedores de opinião – considera que só eles é que têm direito a ter opinião. Um dos grandes comentadores nacionais até disse que eu tinha era de estar calado.
Marcelo Rebelo de Sousa?
Você é que disse o nome, é exactamente esse. Disse que tinha muita consideração por mim, mas que eu tinha era de estar calado e não intervir. Eu lembro-me daquela fadista que dizia “cantarei até que a voz me doa”. Eu falarei até que a voz me doa. Não admito a ninguém – nem ao Marcelo Rebelo de Sousa, por quem eu não tenho consideração nenhuma, nem pelo seu passado, nem pelo seu presente, apesar de ele dizer que tem muita consideração por mim – que me diga “já fizeste o que tens a fazer”. Eu sou cidadão de corpo inteiro e tenho o direito de intervir. Assim como o outro vem dizer...
Quem?
O Sousa Tavares. Ele diz: “haja alguém que lhe explique [a Vasco Lourenço] que estamos em democracia”. Mas é a mim que ele vem explicar que estamos em democracia? O despautério destes fulanos, que estão convencidos que sabem tudo... Nós assistimos à manipulação permanente das ideias feitas por esses indivíduos.
O que o leva a não ter consideração pelo professor Marcelo Rebelo de Sousa?
Não tenho e não lhe admito que ele me diga que tenho de me calar. Sou um cidadão empenhado, que participou num dos actos mais importantes da história do país. Tive essa sorte e continuo a pugnar para que isso se mantenha. Não aceito que me ponham mordaças.
Já lhe perguntaram muitas vezes se estaria disposto a fazer outra revolução?
Costumo dizer que uma geração que tenha a sorte de participar numa revolução já se pode dar por muito satisfeita, mas é evidente que muitas vezes olho para a situação e apetece-me fazer alguma coisa. Os dados são outros, nós teoricamente continuamos a viver em democracia, e quero continuar a viver em democracia. Mas a democracia tem regras, não é só votar de quatro em quatro anos.
Mas é inegável que vivemos em democracia.
Vivemos numa democracia formal. A democracia está doente há muito tempo. Os eleitos, de uma maneira geral, esquecem imediatamente os eleitores, rasgam as promessas que fizeram e conduziram à sua eleição e, por isso mesmo, na minha opinião perdem a legitimidade. Estou farto de ouvir dizer que este governo foi eleito há pouco tempo. É verdade, mas a legitimidade só a mantém se cumprir aquilo que disse que ia fazer. E o governo perdeu-a por completo quando rasgou as promessas que fez ao eleitorado. E portanto não é esta a democracia que eu quero e, a continuarmos assim, o ciclo da democracia está a encerrar-se no mundo.
E o que vem a seguir?
Não conheço nenhum sistema menos mau que o sistema democrático e tudo o que vier é pior. A democracia continua a ser o menos mau.
Está a dizer que a degradação da classe política neste regime democrático pode conduzir a uma ditadura?
É muito natural que possa caminhar nesse sentido. O problema é que o poder económico domina o poder político...
Essa foi a grande mudança desde o 25 de Abril? O facto de o poder económico ter conseguido sobrepor-se, em alguns casos, ao poder político?
Os políticos têm sido autênticos instrumentos do poder económico. Eu diria que, nos últimos 20 anos, isso se acentuou, e de que maneira!, mas não foi só em Portugal. Tínhamos grandes líderes e hoje não temos. Hoje temos a Merkozy [junção dos nomes de Merkel e de Sarkozy] e o Berlusconi. Por isso mesmo, não há saídas. Os grandes líderes desapareceram. Quem é que temos? Vê alguém com características de líder?
O nosso primeiro-ministro não tem características de líder?
De maneira nenhuma. Ele descredibilizou-se imediatamente. Como é que pode ter credibilidade se prometeu uma coisa e está a fazer outra? Não pode.
Mas não admite que, perante a situação em que o país está e perante a obrigatoriedade de cumprir um programa que foi assinado com a troika, são necessárias algumas destas medidas para controlar a despesa?
Já lhe disse: o dinheiro existe, está é mal distribuído. Como é possível ter uma sociedade relativamente justa quando a média do vencimento em Portugal é cerca de 40% a 60% do vencimento na Europa mas os quadros em Portugal ganham cerca de 20% a 30% mais que na Europa? Isto são situações aberrantes a absolutamente pornográficas.
É uma forma de esses quadros não saírem do país e irem ganhar mais lá para fora.
Fujam todos. Com os resultados a que levaram a economia podem fugir todos. Se lhes pagam melhor, vão lá para fora. Não fazem cá falta. Quem levou o país a esta situação não faz falta.
Quando é que entende que começou a situação em que o país se encontra actualmente?
Há muitos responsáveis, mas na minha opinião os problemas começam quando o actual Presidente da República chega a primeiro-ministro e permite, por exemplo, que os subsídios da Europa sejam utilizados para tudo menos para o bem de Portugal. Quando se recebem subsídios para destruir a agricultura ou para destruir as pescas os problemas começam a acentuar-se.
Embora essa altura tenha sido vivida com alguma euforia pelos portugueses, que deram a Cavaco Silva duas maiorias absolutas como primeiro-ministro e, mais tarde, duas como como Presidente da República.
São os males da democracia. Costumo dizer: não se queixem, vocês é que votaram. São os males da democracia. A democracia tem defeitos e um dos defeitos é a propaganda e a publicidade...
Mas os portugueses votaram nele e não me parece que tenham sido enganados com propaganda durante tanto tempo. Não acha?
Com certeza. A responsabilidade é sempre dos principais dirigentes, mas também é de todos. Nós temos uma maneira de estar que nos leva a estas situações. A pequena cunha, a pequena vigarice, a economia paralela. Como eu digo às vezes, isto já não é um país, isto é um lugar mal frequentado. Somos o que somos. Ainda sofremos as consequências da inquisição, que secou as elites em Portugal, e faltam-nos elites.
São fracas?
São. Os portugueses são bons em todo o mundo, mas é chefiados por outros.
Qual é o sinal que os militares querem dar com a manifestação de hoje?
Os militares vão manifestar a sua revolta por duas razões: uma como militares e membros de uma instituição, que tem sido destruída, na sua essência, como suporte útil do Estado português e da pátria. Há aquilo a que se chama condição militar. Os militares têm restrições de direitos, têm deveres especiais, juram defender a pátria com o risco da própria vida e, por isso mesmo, a Constituição compensa-os com alguns direitos que o cidadão normal não tem. Isso tem vindo a ser retirado por completo.
O poder político deixou de perceber essa diferença?
Há muito tempo. O PS tem também uma responsabilidade enorme. Há muito tempo que não olham para a especificidade das Forças Armadas. Por outro lado, os militares são cidadãos e estão a sofrer na pele as consequências de uma política inqualificável, que põe uns cidadãos contra outros. Quando se dividem os cidadãos em funcionários públicos e não funcionários públicos está-se a pôr uns contra os outros e estão a criar-se condições que podem acabar em convulsões complicadas. E sabemos como as coisas começam, mas nunca sabemos como acabam.
Mas também há quem diga que os militares têm excessos de regalias e sobretudo que têm de participar no esforço pedido a todos os portugueses. Há pouco tempo Macário Correia dizia que estamos a alimentar oficiais superiores que não fazem nada e que o mundo militar vive de privilégios e mordomias que devem acabar. Não sei se ouviu.
É de uma ignorância sem par e provavelmente tem uma razão de ser. Ele terá digerido mal a sua passagem pelo serviço militar obrigatório, no qual não esteve porque foi requisitado para um gabinete ministerial. Teve um privilégio enorme. Parece também que terá a ver com umas instalações militares, em Faro, a que ele queria deitar a mão, e não está a conseguir.
Mas falava-lhe era das mordomias.
Essas afirmações só mostram ignorância. Nem merecem resposta. São tão estúpidas que não merecem resposta. Lembro-me que ele dizia que beijar uma rapariga que fumasse era a mesma coisa que lamber um cinzeiro. Ele lá saberá as linhas com que se cose. Uma coisa dessas só tratada como o coronel Lacerda tratou o Alberto João Jardim.
Como é que o tratou?
À bofetada. O Alberto João Jardim disse que os militares estavam a ficar efeminados e um coronel, que o conhecia de pequenino, fardou-se e foi lá ao palácio. Quando ele lhe apareceu disse-lhe: “eu agora vou-te explicar quem é efeminado”, e pregou-lhe duas bofetadas na cara.
Voltando à manifestação. Acha que há a garantia de que os protestos dos militares serão pacíficos?
A minha convicção é que irão manifestar-se de forma correcta, dentro das regras, mas na esperança de que o poder político saiba ler os sinais que surgem de uma manifestação deste género.
Teme uma atitude mais radical se o poder político não ouvir as pretensões dos militares?
Quero crer que não. Tudo vai depender da evolução da situação, de haver um acentuar da convulsão social, de haver a entrada em ruptura. Apesar de quase terem acabado com o grande espírito das Forças Armadas, a instituição militar ainda é o sustentáculo de alguma estabilidade. Quero crer que não haverá, da parte dos militares, acções que vão contra o Estado democrático. A convulsão social está em marcha, mas não é só em Portugal. Há alguns idiotas que dizem que estou a apelar à revolução, mas só estou a alertar.
A ideia de os militares voltarem a tomar conta da situação não faz sentido nenhum neste momento?
Neste momento não. Em momento de forte perturbação e de forte convulsão é capaz de fazer sentido. Neste momento não preconizo que os militares façam um golpe e tomem conta do poder e substituam os governantes eleitos democraticamente. Longe de mim.
Já defendeu, no entanto, que, se as forças de segurança abusarem da repressão, os militares devem ter uma palavra a dizer...
Isso é outra coisa. Eu falei em termos hipotéticos e em situações extremas, porque nunca defendi a anarquia, nem nada que se pareça. Se houver anarquia, situações de distúrbios de ordem pública, como aconteceu noutros países, a repressão é desejável. O que temo, por alguns sinais, é que haja a tentação do poder de, às primeiras convulsões na rua, mesmo que sejam relativamente pacíficas, aparecer com mangueiradas à moda antiga e outro tipo de atitudes. Se nós tivermos, por exemplo, as forças de segurança a atirar sobre a população, como é?
Se isso acontecesse e os militares saíssem à rua contra as forças de segurança, seria o caos absoluto...
Não, os militares nessa altura teriam de dizer basta e dizer ao poder que acabou. Basta! Se chegarmos a esse extremo – e não desejo de maneira nenhuma que lá cheguemos, nem defendo que isso venha a acontecer –, aí acho que haverá legitimidade e espero que as Forças Armadas consigam manter a serenidade suficiente para ver que não podem permitir que isso continue. Não podemos olhar para a população como o inimigo interno.
Se chegarmos a um caso extremo, os militares devem tomar conta do poder?
Se chegarmos a um ponto em que, a certa altura, o inimigo é a população, não é a população que está errada. É de certeza absoluta o poder que está errado. Oxalá não cheguemos.
Os militares protestam e outros sectores protestam, mas o país está dependente do exterior e numa situação muito complicada. Não entende a necessidade de alguns sacrifícios de que fala o governo?
Deixaram-nos chegar a esse ponto. Talvez a primeira coisa a fazer seja saber exactamente o porquê de responsabilizar quem nos deixou chegar aqui. Eu gostava de saber se o meu 13.o e 14.o mês vão servir para tapar o buraco da Madeira. Ou vão servir para tapar o buraco do BPN? Há responsáveis. No BPN só ouve um que esteve preso e acho que já nem está. Os outros andam por aí a pavonear-se...
Também defende que deve haver uma responsabilização criminal dos políticos que conduziram o país a esta crise?
Em último caso sim. Há situações que o exigem. Os únicos crimes cometidos são os da ferrugem do Godinho, que começou esta semana a ser julgado? Não estou a dizer que esse não deva ser penalizado, se o fez. Mas não se utilize isso como bode expiatório para tudo.
Como vê estes movimentos dos jovens da geração à rasca, que representam uma nova forma de contestação que tem tido alguma adesão das pessoas?
Com agrado. É um sinal de que os jovens estão a ganhar consciência de que têm de participar na causa pública e na definição da política do seu país. Não podem abster-se. Já tomei a iniciativa de os convidar para dialogar e já fizemos uma acção conjunta, que foi um debate sobre o aprofundamento da democracia.
Ao contrário do que aconteceu a seguir ao 25 de Abril, os portugueses hoje também mostram pouco interesse nessa participação de que fala.
Eu costumo dizer que assistimos a uma bebedeira colectiva. As pessoas iam a reuniões, a debates, não ficavam em casa e defendiam os ideais. Depois a participação começou a ser um exclusivo dos partidos, que boicotaram a participação cívica. E na minha opinião os partidos falharam todos.
Mas os partidos são essenciais para a democracia. Sem eles não há democracia.
A democracia formal, como nós a entendemos, é uma democracia representativa. Defendo um entrosamento entre a democracia representativa e participativa ou directa. Os partidos falharam e agora são um obstáculo a que quaisquer outros participem. Aquilo a que assistimos ao longo destes últimos anos é que os partidos procuram infiltrar e dominar as tentativas de participação cívica.
Foi o caso do Fernando Nobre, que acabou por ser convidado pelo agora primeiro-ministro para as listas do PSD?
O Fernando Nobre foi um falhanço total. Foi uma esperança extraordinária e a seguir, por um penacho, para ir para deputado, estragou tudo. Foi imediatamente comprado por um partido político.
Tem alguma preferência política?
Sempre disse que o espaço político, em termos ideológicos, em que me situo estava ocupado pelo PS. Sempre tive maior inclinação para o PS, mas a sua prática desiludiu-me muito e neste momento não tenho nenhuma preferência.
Passou a rever-se no PCP ou no Bloco de Esquerda?
De maneira nenhuma. Nunca me revi e em 74/75 isso ficou bem claro. O Bloco de Esquerda tinha muitas coisas aliciantes, mas não posso aceitar que tenha determinadas atitudes porque sabem que nunca vão chegar ao poder.
Acha que o Bloco de Esquerda peca por ser demagógico?
Não lhe chamaria só demagogia. É irrealismo. Eu lembro-me logo de uma amigo meu que esteve na extrema-esquerda em 74/75 e, há dois ou três anos, disse-me: “Não há dúvida que nessa altura tinhas razão, mas tens de concordar que eu gozei muito mais do que tu.”
Não tem nenhum político como referência?
Não, não tenho.
Nem o Mário Soares, por exemplo?
Penso que ele conseguiu ser, a partir de certa altura, o único político com envergadura em Portugal, embora a sua permanente incapacidade para perceber as Forças Armadas me tenha levado também a ser crítico. Mas é o que resta de alguns grandes políticos que houve na Europa. Reconheço-lhe algumas qualidades extraordinárias, como, por exemplo, o facto de a liberdade, para ele, ser uma barreira intransponível.
Vivemos num país livre?
É evidente que temos liberdade. Tenho liberdade de falar, mas quando há desemprego e começa a haver fome a liberdade começa a ser condicionada. E há medo. Há muito tempo que em Portugal voltou a haver medo.
Encontra algum paralelo entre os tempos de hoje e os da ditadura?
Aí havia censura clara.
Estou a referir-me também às condições de vida, ao facto de as pessoas enfrentarem grandes dificuldades.
Em termos globais estamos ainda muito melhor.
Como encara a hipótese de comemorar o feriado do 25 de Abril – que em 2012 é a uma quarta-feira – na segunda-feira?
Não me vejo a comemorar o 25 de Abril no dia 23, vou comemorá-lo no dia 25. Espero conseguir e que nesse dia venha muita gente para a rua mesmo que não seja feriado. Acho que isto é tudo demagogia. Qualquer dia estão a sugerir que se comemore no dia 28 de Maio.
Nota do RoP:
Genericamente, estou de acordo com todas as respostas de Vasco Lourenço. Se me tivessem feito as mesmas perguntas, tenho a impressão que as respostas seriam iguais.
Curioso, é que, tal como eu, Vasco Lourenço, pretende apenas a responsabilização efectiva da classe política, como forma de corrigir os desvios que foram sucessiva e crescentemente perpretados pelos governantes. Porém, não sendo ele comunista, embora simpatizante de uma esquerda moderada, não tarda que os liberais da treta lhe comecem a colocar rótulos leninistas, estalinistas, maoistas e [porque não?] ... populistas [coisas que eles "não" são].
Sem comentários:
Enviar um comentário
Abrimos portas à frontalidade, mas restringimos sem demagogia, o insulto e a provocação. Democraticamente...