21 maio, 2010

A Constituição não é rolo de papel higiénico

O conhecido jurista Pedro Bacelar Vasconcelos referiu hoje no semanário Grande Porto que a cláusula constitucional que proíbe a criação de partidos regionalistas só lá foi introduzida por, em 1976, se falar em separatismo. Concluiu assim - e na minha opinião, muito bem -, que hoje não se justifica tal limitação. 

Já lá vão mais de 30 anos, e por isso não posso garantir, com plena segurança, que esses rumores de separatismo tenham produzido junto das populações um impacto nacional [e mesmo regional], suficientemente estrondoso, que justificasse a aberração democrática do nº.4 do Artº.51, que diz textualmente:    não podem constituir-se partidos que, pela sua designação ou pelos seus objectivos programáticos, tenham índole ou âmbito regional. Mantenho portanto a convicção de que não houve movimentações* nesse sentido, até porque não há documentação histórica credível para confirmar a tese separatista. 

De qualquer maneira, se foi o receio de separatismo que esteve na base da decisão de alterar a lei, os resultados dessa decisão revelaram-se completamente contrários ao que se esperaria, isto é, decorridos 34 anos, as condições para o fomento do separatismo foram profundamente acentuadas por uma megalómana concentração de poderes na capital, agravadas pelos sucessivos desvios de fundos europeus das regiões mais pobres para a região de Lisboa. Há nestas acções claros sinais que atestam da irresponsabilidade de se recorrer à alteração da Constituição sempre que se encontram dificuldades que mais não são do que a manifestação de uma incapacidade continuada e crónica para governar o país.

É evidente que a Constituição de 1976 teria inevitavelmente de ser corrigida do seu articulado mais revolucionário, até porque ainda estava ligada ao Movimento das Forças Armadas e tinha uma carga ideológica demasiado romântica. Senão vejamos o que diziam os artigos 2º. e 3º. respectivamente:
  • Estado democrático e transição para o socialismo
A República Portuguesa é um estado democrático, baseado na soberania popular, no respeito e na garantia dos direitos e liberdades fundamentais e no pluralismo de expressão e organização política democráticas, que tem por objectivo assegurar a transição para o socialismo, mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras.
  • Soberania e legalidade [alínea 2]
O Movimento das Forças Armadas, como garante das conquistas democráticas e do processo revolucionário, participa, em aliança com o povo, no exercício da soberania, nos termos da Constituição.

Como é perceptível pelo texto, esta Constituição tinha de ser adaptada à realidade europeia [como de facto foi], caso contrário, seríamos uma espécie de Cuba da Europa. Mas tal não justifica que, cada vez que se depara um obstáculo se tenha de recorrer sistematicamente à sua revisão. Esse trabalho devia ter sido feito com extremo rigor, ainda que calmamente, preservando o que se considerava bom e ajustável ao futuro e excluindo os paradoxos. Porque, se faz sentido retirar da Constituição termos do tipo: «assegurar a transição para o socialismo», por conter em si mesma uma conotação/opção política, já não faz sentido nenhum proibir a constituição de partidos políticos regionais. Neste caso está-se abusivamente a amputar o leque de opções democráticas aos cidadãos.

É à luz destas incongruências que tenho fortes suspeitas sobre a credibilidade política e intelectual daqueles que, passados mais de 3 dezenas de anos, depois dos dramáticos prejuízos económicos e sociais causados pelos sucessivos Governos centralistas à região Norte, ainda têm dúvidas sobre a bondade deste regime. Dá para presumir que precisam de outros 36 anos para as retirar... Ora, o povo é capaz de não ser tão paciente, por razões facilmente compreensíveis. E é neste ponto que entronca a grande realidade e se legitima esta questão: é, esperando em vão, continuando a  empobrecer e ofender a população do Norte que se consolida a coesão nacional e se evitam movimentos separatistas? 

É, senhor Presidente da República? Mas o senhor Presidente não ouve, nem quer saber, está entretido a ensaiar o próximo discurso...

* Apenas na Madeira e nos Açores houve esse tipo de ameaças, o que, ao contrário do que aconteceu no Continente, veio a revelar-se fundamental para a sua autonomia.

Desculpem a brejeirice...
... mas, a aparente prudência dos anti-regionalistas e a sua fé cega num regime esclerosado, recorda-me uma velha anedota que simbolizava o cúmulo da paciência, que  era assim: coloca um cagalhão [palavra horrorosa] numa gaiola e  espera que ele cante.

4 comentários:

  1. Regionalização efectiva, para quando?!

    Parece-me que é nesta tecla que temos de bater, até porque aparentemente pelo menos e em teoria todos os políticos estão de acordo que é preciso fazer-se a regionalização... pôr em prática a que está aprovada, já é outra questão... porque pelos vistos o poder central não está disposto a fazê-la...

    Temos de exigir aos políticos que a aprofundem que a aperfeiçoem se for o caso, e acabar com a relutância do governo centralista em pô-la em prática...

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  2. Eu compro todas as semanas o Semanario "Grande Porto". Na edição de hoje lá vêm eles os lambe-botas dos partidos Nacionais como R.Sampaio, Honório Novo, Narcisos de Mirandas e tantos outros a manifestarem-se contra a regionalização.
    Se um dia se conseguir a regionalização, estes paspalhos de certeza que vão gravitar nos partidos regionais, à procura de um lugarejo.
    Bom... pelos vistos temos que ameaçar com separatismo para nos darem alguma autonomia regional!.. pobres coitados.
    Estes centralistas (que de democratas não têm nada) não estarão a por as mãos no fogo!?...

    O PORTO É GRANDE VIVA O PORTO

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  3. Tem toda a razão o Pedro Bacelar Vasconcelos e explica muito bem, mas não acredito que os actuais partidos vão regionalizar o país e mais, se noutra conjuntura não o fizeram, agora, como a crise lhes serve para tudo, então é que não regionalizam mesmo. Temos de ser nós a mudar a situação.

    Um abraço e bom fim-de-semana.

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  4. Mesmo sem ser jurista, arrisco dizer (e mais gente tem a mesma opinião) que a disposição do num.4 do art. 51 é anti-constitucional, o que significa que uma acção oficialmente posta no Tribunal Constitucional no sentido da sua eliminação,tinha pernas para andar.Só não sei porque motivo isso nunca foi feito.

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Abrimos portas à frontalidade, mas restringimos sem demagogia, o insulto e a provocação. Democraticamente...