24 setembro, 2011

Quantos tripeiros da estirpe de Hélder Pacheco sobreviverão a esta selva? Quantos?

Ética moderna

Nos tempos do arroz de quinze, o Burgo era habitado sobretudo por uma pequena e média burguesia que lhe imprimia a atmosfera de cidade "grave, ponderada e sensata", conforma a definiu Pierre Léonforté.

Este modo de ser formava-se contra a Situação, desprezando o Terreiro do Paço e desconfiando do que vinha da Capital [diga-se que, comparativamente com a actualidade, o Centralismo Salazarista era amador]. A vida decorria debaixo de princípios assumidos por herança de uma atitude hoje desprezada chamada senso comum.

FÓRMULAS DE OUTROS TEMPOS
As fórmulas de comportamento daí derivadas eram simples:

  1. Ser poupado ["Quem ganha 100 e gasta 90, vive tranquilo. Se gasta 120, dá em droga"] "Gastador e gastadeira" eram desconsiderados.
  2. Pagar o que se deve [as dívidas eram sagradas e caloteiro atributo abaixo de cão].
  3. Cumprir com a palavra dada [meu avô nunca assinou contratos, o aperto de mão selava o compromisso].
  4. Viver a economia do aproveitamento: os fatos mandavam-se virar, colarinhos e punhos das camisas eram substituídos periodicamente e os buracos das meias cosidos por mãos de fada. Havia nas casas um quarto de costura destinado aos consertos [quando apareceram as meias de "de vidro", surgiu a apanhadeira de malhas].
  5. Comida é respeito: a do prato comia-se ao milimetro e as sobras guardavam-se para outra refeição; pão caído no chão apanhava-se e beijava-se.
  6. Pagar a pronto. O que se comprava era a contado, toma lá, dá cá. O primeiro automóvel do meu pai, um Ford Barrigudo, em segunda mão, foi adquirido em sociedade com o senhor Victorino Bernardino Ferreira, gerente do Bazar Central. Embora pudessem ter cada um o seu, preferiram dividir as despesas a meias.
  7. Cumprir com o trabalho. Queria dizer: pontualidade, assiduidade, defesa da empresa, competência, eficácia [fosse guarda-livros, torneiro ou caixeiro, "ser trabalhador" era tão honroso quanto "ser sério"].
  8. Em tal ambiente [agora apelidado de reaccionário e castrador], os vigaristas actuavam em S. Bento aldrabando os incautos, e os carteiristas moviam-se em eléctricos, romarias e futebol segundo códigos de ética profissional.
VALORES SUBVERTIDOS
Este tempo atrasado e repressivo - conforme os padrões do eduquês, do politiquês, do psiquiatrêz e do sociologiquês que nos comandam - em que cresceu a minha geração foi violentamente atingido por uma realidade que subverteu muitos valores de um mundo decente, substituindo-os por gastar, atropelar, consumir até à exaustão, comprar a crédito, comer e beber do melhor, não pagar, dar golpes de milhões em certos bancos e empresas publico-privadas. Desprezar a inocência e a honradez. Trepar a qualquer preço, etc.

Não temos uma geração à rasca. Temos um país que gente rasca degradou até aos limites da sua capacidade de resistência à destruição cívica. Nos tempos de que atrás falei, os donos da loja "Elefante Branco" e dos "Armazéns Nascimento", ante a falência, suicidaram-se por honestidade e vergonha, enquanto muitos devoristas e gastadores que hipotecaram o nosso futuro, em lugar de borrarem a cara e desaparecerem, botam discurso e ainda criticam. É a ética moderna!
[Hélder Pacheco]

Nota de RoP

É impossível, a quem tem idade quanto baste [e memória] não entender o vocabulário  austero de Hélder Pacheco, e ficar-lhe indiferente, independentemente da classe social em que se situa. É preciso lê-lo à luz da sua realidade pessoal. Evidentemente que, o facto de o pai de HP ter comprado a meias um carro com um amigo, não quer dizer que já não houvesse quem comprasse carro individualmente. Assim, como a magnifica história das "meias de vidro" e as apanhadeiras de malhas, não pretende radicalizar a ideia de, ao tempo, não haver mulher sem posses financeiras para comprar meias novas. Importa sim realçar o espírito de sobriedade e contenção [o tal bom senso] que imperava nesses tempos.

Qualquer político, ou figura pública da "ética moderna", devia corar depois de ler este soberbo artigo, mas isso é muito improvável. Para que tal pudesse acontecer, teria de existir uma condição prévia: ter ideia do que é a vergonha! E os políticos não a têm.   

4 comentários:

  1. O quê?Este Helder Pacheco é mesmo um homem á moda antiga!
    Esses valores que defende já não se usam!
    Lá para o final do mês vai-me nascer o primeiro filho!Já tenho á esperinha dele um telélé topo de gama que me custou os olhos da cara e um computador para que possa fazer amigos nas redes sociais!
    Um carro á sociedade?Deus ma livre!
    O carro tem de ser só meu e os oculos de sol que uso até no inverno teem de ser de alta qualidade!De duzentos aéreos pelo menos!

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  2. Ah,já me esquecia!Uma vez que ne vai nascer o primeiro rebento tenho que vender o automóvel e comprar um monovolume!Sabem como é,a familia vai crescendo...

    Anónimo de há bocado!

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  3. Hélder Pacheco é um GRANDE SENHOR, um exemplo de cidadania, um homem do Norte como há poucos, uma espécie nem vias de extinção.

    Abraço

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  4. excelente artigo
    grande helder pacheco
    isto havia de se ler nas escolas
    assim nos comportassemos e não haveria concerteza necessiade de troicas e baltroicas

    força porto , força norte e nortenhos

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