19 outubro, 2007

Centralismo for Dummies

«Há dias, ouvi um amigo lisboeta dizer que o declínio do Porto se assemelha ao que ocorreu há décadas em Coimbra, atribuindo esta decadência a uma deficiente estratégia de articulação entre políticos e elites da região. De facto, nos últimos 20 anos, fomos incapazes de agir de forma concertada, os políticos sucumbiram ou renderam-se ao canto das sereias do poder central, as elites ainda se imaginam herdeiras de um Porto liberal e influente que porventura já não existe, mas são outras as razões primordiais. O Porto só teve protagonismo quando teve poder económico, nos finais do século XIX e logo após o 25 de Abril. Este último foi um fenómeno fugaz que coincidiu com a turbulência da revolução, porque, apesar da perda das colónias, Lisboa mantivera a sua cultura de capital do Império e não tardou em descobrir as suas novas especiarias nos fundos que começaram a chegar por via da adesão europeia. Tal como nas eras dos Descobrimentos e do ouro do Brasil, a chegada da riqueza catalisou o ímpeto centralizador e a cobiça dos cortesãos. A súbita abundância reforçou também uma burocracia opulenta, autocrática e despótica, que ora corrompe ora destrói todos os que lhe tentam fazer frente. O Porto foi vítima deste estado de coisas, não só porque o centralismo ajudou a abater a sua pujança económica, mas também porque, enquanto sede de um modelo alternativo e centro do contrapoder, era o alvo a abater.

Para isso contribuiu o facto de termos estado quase sempre em contraciclo político relativamente ao poder central. Terá sido por fatalismo histórico, ou essa divergência é um resíduo da proverbial irreverência tripeira? Certo é que, durante o cavaquismo, em que a cidade foi liderada por Gomes, a hostilidade do Governo foi evidente na privatização do BPA e na sobranceria com que foi visto o projecto do metro. Com Guterres, chegou a haver convergência, mas a regionalização armadilhada foi um primeiro prenúncio de que os principais autarcas e líderes socialistas do Norte não iriam ter tréguas. A queda de Guterres coincidiria com a vitória de Rio e com o domínio metropolitano do PSD, mas essa efémera convergência com os governos PSD/CDS foi desperdiçada em querelas intestinas. Desde então, a derrota do PS nas últimas autárquicas acentuou a divergência. Estará o Porto a pagar o preço dessa insubordinação? Certo é que o ímpeto centralista que já imperava em Lisboa se "portofobizou". A questão do metro, a privatização da ANA, as opções sobre infra-estruturas, são exemplos dessa política, encoberta por operações mediáticas que sustentam a ideia de que somos o poço dos problemas nacionais. "O vosso aeroporto e a Casa da Música custaram o dobro do orçamentado", dizem-nos, como se fossem casos virgens; "o metro é caríssimo e mal gerido", argumentam, esquecendo a comparação com o da capital. O caso dos túneis é o mais evidente: no de Ceuta, acusaram-nos de discutirem a sua saída como se isso fosse uma prova de que "aquela gente não se entende". Em Lisboa, a intervenção cívica para interromper as obras do túnel do Marquês foi de tal maneira louvada que este não está pronto mas o responsável pelo embargo foi elevado a herói e depois a autarca. Se surgem problemas com autarcas do Norte, vende-se a ideia de que são todos caciques e achincalha-se o eleitorado, mas se há uma crise na Câmara de Lisboa, passamos a estar todos envolvidos porque o caso é visto como uma questão de âmbito nacional. Tem sido assim também o Apito Dourado, que assobia para Sul e ataca para Norte, apesar dos sintomas de que o aliciamento dos árbitros é uma prática corrente, generalizada e nacional, e que serve para passar a ideia de que os sucessos do FC Porto foram alcançados pela trapaça e de que os nortenhos são batoteiros. Passaria pela cabeça de alguém acusar os lisboetas de pedófilos só porque a Casa Pia e os seus arguidos são oriundos da capital? Mesmo no referendo do aborto, houve quem tivesse o desplante de avaliar a disparidade regional do voto para concluir que as gentes cá de cima são retrógradas e incultas.

Quando a intoxicação já não pode ocultar que o país é governado com dois pesos e duas medidas e que a economia do Norte está em frangalhos, eis que surge na mesa a última cartada: para anestesiar o descontentamento, o PS promete referendar a regionalização. Esta seria bem-vinda - e digo "seria" porque duvido de que seja aprovada -, mas será por mero acaso que só possa ocorrer em 2011, quando já não restarem fundos de coesão para podermos corrigir a mira?

Sócrates limita-se a continuar uma velha mas inconfessada política. Desde os governos de Cavaco que há um propósito de impedir que o Noroeste Peninsular possa vir a ser uma região num futuro mais ou menos distante. Será pela melhor razão, para preservar as fronteiras do nosso Estado-nação? Ora, quando se assiste à submissão dos nossos governos aos interesses de Espanha, seja na política económica (que sucumbe às ordens das suas grandes empresas e não resiste às perseguições às portuguesas em solo espanhol), seja nas negociações dos dossiers da energia e da água, seja na construção do TGV em que se aceita a lógica radial de Madrid, é lícito perguntar: não haverá um plano furtivo para garantir que Lisboa sobreviverá, mesmo que apenas como capital de uma futura região (decalcada no nosso mapa e da qual o Norte não se possa vir a destacar) de uma federação ibérica orquestrada na Moncloa?

Pode ser uma visão catastrófica, mas numa altura em que faltam temas à oposição de direita, é sintomático que esta esqueça a questão do centralismo e o abandono do Norte, que poderiam ser o seu estandarte. Dos partidos à esquerda do PS, a necessidade de proteger a sua clientela eleitoral, que se concentra em grande parte em Lisboa e no Vale do Tejo, e tem nos funcionários públicos (a quem o centralismo convém) a sua maior expressão, não se pode exigir essa visão.

O resultado desta política furtiva está à vista: temos um Estado exíguo, centralista e, a prazo, inviável. Quando acabarem os fundos de coesão, não se imagina como o país poderá continuar a sustentar os seus vícios e não se antevê que até lá seja possível alterar o paradigma. Depois da batota com o mapa das NUT em que a região de Lisboa e Vale do Tejo mingou para poder desviar para os arrabaldes da capital mais alguns fundos de coesão, vamos assistir a um último esforço por desenvolver uma só região que, no futuro, o país não poderá pagar? É essa a nova ameaça ao Porto e a toda a província, como ainda se vai chamando secretamente ao país que não cabe entre as densas colinas da Olisipo.

Como disse Elisa Ferreira, por muito que Lisboa progrida, a sua dimensão nunca permitirá compensar a decadência do Norte e do Centro. A economia destas regiões, que produz a maior parte dos bens transaccionáveis, não suporta o empolamento dos factores de produção não transaccionáveis e dos serviços do Estado que se concentram numa cidade em que o PIB per capita é o dobro do seu. Por isso, se adiarmos a descentralização até que se extingam os fundos de coesão, o país estará falido, o regime em perigo e a nação em risco de desagregação.»

2 comentários:

  1. Este artigo do Dr. Rui Moreira corresponde talvez ao melhor que ele escreveu e constitui uma análise brilhante dos nossos problemas.

    Continuo porém a insistir no mesmo ponto. Diagnósticos há muitos, terapeuticas não vi ainda nenhuma. Se os prognósticos sombrios, mas realistas, de Rui Moreira se concretizarem, corremos o risco de sermos como o doente que sabe o mal de que padece mas que acaba por morrer porque ninguém lhe receita os medicamentos necessários.

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  2. É verdade. Mas é esse o nosso problema, a falta de terapeuticas.
    Os políticos não são de confiança, são apenas a voz do dono, que devia ser a nossa, mas que depois se resume à voz do mandante partidário, o que, não é, de todo, a mesma coisa.

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